Wednesday, September 19, 2007

Tempus


Custódio Castelo é sem dúvida uma das referências indiscutíveis da renovação da guitarra portuguesa nas últimas duas décadas...”. De Ruy Vieira Nery, este texto de abertura do folheto que integra o disco compacto a solo do guitarrista Custódio Castelo, constitui talvez a forma mais apropriadamente sintética com que poderíamos apresentar este trabalho discográfico, instrumental, de seu nome, Tempus. Conhecido no meio artístico do fado a propósito das inúmeras colaborações com artistas de renome como Mísia, Camané, Carlos do Carmo e até Amália Rodrigues, entre outros, e mais recentemente, com acentuada evidência, a propósito das suas prestações como compositor e intérprete excepcional da guitarra portuguesa, facto inteiramente justificado e perfeitamente ilustrado com a edição no Benelux em 2003, com significativo sucesso, de alguns dos temas presentes neste álbum, ou ainda com o seu desempenho em “O descobridor”, onde a partir de composições suas, Cristina Branco canta a poesia de Jan Jacob Slauerhoff, um dos mais importantes escritores holandeses do princípio do séc. XX. Custódio Castelo traz-nos neste seu trabalho a solo o seu particular e genial entendimento sobre este instrumento luso, transportando-o para outra dimensão onde talvez só Carlos Paredes tenha estado e aí colocado a guitarra portuguesa. Onde Carlos Paredes nos mostrou a sua técnica e emoção, Custódio Castelo acrescenta erudição e recoloca o instrumento num plano técnico superior, através da composição de harmonias complexas, de elevado grau de dificuldade de execução, transportando a guitarra portuguesa para um padrão universal onde poderíamos encontrar outros exemplos, com outros instrumentos, na área do jazz, da música clássica, do tango... Astor Piazzolla, Richard Galiano, Béla Fleck, Paco de Lucia, entre muitos outros, tiveram a particularidade de dar a conhecer ao mundo, universal, aquilo que era apenas de alguns, pertença das culturas restritas de povos ou regiões, através do trabalho apurado que tiveram sobre os seus instrumentos ou género musical. Depois de Carlos Paredes, Custódio Castelo permite-nos pensar que este trabalho não foi em vão, muito pelo contrário, e aqui temos a guitarra portuguesa no seu melhor, em termos da composição original, da técnica de execução, da harmonização, por fim, da emoção que este instrumento nos traz e a todos aqueles que sentem as vibrações extraídas e a energia liberta, que eleva e dignifica todos os que a tocaram. É o que se sente, honrando o mestre Carlos Paredes na faixa seis do álbum, em “Homenagem a Carlos Paredes”, onde de alguma forma consagra todos os que lhe passaram os dedos e que a trouxeram até aqui, ao presente. No que se refere às composições apresentadas neste álbum, poderia dizer-se que Custódio Castelo transporta-nos numa viagem no espaço e no tempo, diga-mos, no tempus, apresentando uma variedade temática que nos leva do fado mais evidente, como em “Velho Fado de Lisboa”, quase tradicional, ou do “Fado do Monte” e “Ritus”, mais contemporâneos, até à morna, em “Quase Morna”, interpretando-a magistralmente, e onde também toca viola e viola baixo, como que nado nos mares do sul e criado em danças quentes e bares com cheiro a grogue. Por outra vez, entreolhando Carlos Paredes, com emoção, em “Múrmúrios do Silêncio”, também Coimbra... e tango e fado, em “Dança em Tango” ou ainda, nos canais de “Amesterdam” e nas ruas escuras, das mulheres e da noite, do acordeão. Quase sempre com melodias intensas, de alma atlântica, como em “Tempus”, o tema que dá nome ao álbum, mais terno e suave em “Ausente”, ou em viagem, nas “Terras do Pó”, hesitante, com pressa, nem sempre... passa por criações mais interiores bastante mais contemporâneas e reveladoras de outras influências, universais, no género e na forma, onde sobressai uma composição e interpretação mais erudita, exploratória e inovadora, como em “Converza”, “Sinos de Waibel” e “Arc’antica”. De uma maneira ou de outra poderemos viajar neste trabalho experimentando sensações, vindas dos sons e da mágica guitarra portuguesa, operada por dedos mágicos, num gemido também português e assim feito tempo, sem tempo.


Miguel Esteves

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