Monday, September 8, 2008

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 21, Julho / Agosto / Setembro de 2008; © Ambiguae Edições, 2007; título: Marchas, Danças e Canções - Fernando Lopes-Graça

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MARCHAS, DANÇAS E CANÇÕES


Marchas, Danças e Canções

Em 1946, conjuntamente com outros “companheiros de jornada”, Fernando Lopes-Graça leva a cabo a tarefa de editar um livro de canções, a que chamou, Marchas, Danças e Canções, então na sua 1ª. edição, e que continha uma série de poemas de importantes autores portugueses ligados ao movimento neo-realista (1), musicados então por Fernando Lopes-Graça. O livro disponibilizava tanto os poemas como as pautas relativas a cada uma das composições. Nascido segundo o próprio autor, no prefácio da edição, (...) do desejo comum de dar ao nosso povo um pequeno repertório de canções e danças, que correspondessem ao conteúdo actual da sua consciência e que ele pudesse cantar e bailar (...) (2), Lopes-Graça, dando seguimento àquele movimento politico-cultural, abrangente e significativo de uma reacção ao regime ditatorial em vigor, ao estado novo de Salazar, convida então um conjunto de autores que de alguma forma identificam e representam o movimento neo-realista e as suas preocupações, bem expressas nos textos apresentados nessa publicação. Os poemas de Armindo Rodrigues, Arquimedes da Silva Santos, Carlos de Oliveira, Edmundo Bettencourt, João José Cochofel, Joaquim Namorado, José Ferreira Monte, José Gomes Ferreira e Mário Dionísio, a sua evidente marca político-social e a conotação com o movimento neo-realista, tornam esta publicação um objecto amargo para o antigo regime, que imediatamente e na sequência da sua edição, ordena a sua apreensão pela PIDE. Fernando Lopes-Graça que inicia a sua obra de composição em 1927 com “Variações sobre um tema popular português” para só parar no final da sua existência física, em 1994 (as últimas referências de composição datam de 1992, com “Jardim Perdido” sobre Sophia de Mello Breyner Andresen), nunca deixou de ser perseguido pelo regime e este é mais um episódio da sua vida que o torna um exemplo como mestre, compositor e músico, um exemplo de coerência, coragem, verticalidade cívica, de invulgar lucidez e firmeza política, corajoso e infatigável lutador pela causa da libertação do seu povo. Uma vida de luta e persistência, expressa pelo quase imensurável legado que deixou, onde contaremos as suas composições às centenas, numa vastíssima obra que torna difícil estabelecer paralelismos no universo da composição em Portugal. Após a Revolução dos Cravos, quando, em 1980, Lopes-Graça oferece o seu livro “Marchas, Danças e Canções”, com os respectivos direitos de autor, à CGTP-IN, a central sindical fundada ainda no regime fascista, em 1970, entregando em mão esta sua publicação, já então considerada uma obra valiosa e uma raridade bibliográfica, reafirma as suas convicções políticas e sociais, reafirma a sua vontade de continuar a lutar, em pleno regime democrático, por um mundo melhor e mais justo, através da sua contribuição, do seu trabalho e arte, de novo com (...) as Marchas, Danças e Canções, a recordar tempos ominosos da nossa história contemporânea e a vontade de, através da poesia e do canto empenhados, os denunciar e vencer pela esperança num futuro livre e desoprimido (...) (3) . Esta obra, que inclui a série de composições designadas por Heróicas, permanece referencial no seu conteúdo artístico e ideológico e vê publicada a sua segunda edição, pela mão da CGTP-IN, um ano mais tarde, em 1981. Lopes-Graça deixou-nos fisicamente em 1994 e em tempo de comemoração do centenário do seu nascimento, a CGTP-IN, por iniciativa do Departamento de Cultura e Tempos Livres, promove a 3ª. edição desta obra, aqui apresentada. Conforme a nota à edição, esta (...) não traduz somente a homenagem. Lembra o homem como julgamos que ele gostaria de ser recordado: com a obra na mão de quem a canta. (...). Este facto editorial não seria tanto notícia se esta edição não representasse, mais do que uma simples reedição, uma obra completa e profunda sobre o homem e o compositor, sobre a vida de Fernando Lopes-Graça, utilizando para isso as capacidades modernas dos componentes multimédia. Com efeito e notavelmente, esta edição produzida com a chancela de Ambiguae Edições, através de um trabalho técnico e gráfico exemplar, apresenta um conjunto de documentos reunidos pela primeira vez, e que, definitivamente, dão a conhecer a grandiosa obra deste autor ímpar na cultura portuguesa e o homem que a fez nascer. Como eu próprio, muitos pensarão conhecer a obra em causa, mas fácil e rapidamente, através da presente publicação e da sua componente multimédia, constatarão que muito ficariam a dever a uma afirmação desta natureza. Com efeito, Marchas, Danças e Canções, nesta sua 3ª. edição, apresenta-nos, em livro impresso, a 2.ª edição de 1981, facsimilada, um texto de autoria do maestro José Luís Borges Coelho, e um texto inédito de Urbano Tavares Rodrigues que aborda a relação privilegiada de Lopes-Graça com os escritores e poetas. Acentuando o carácter documental desta edição, através de um CD multimédia, somos ainda brindados com uma reedição do CD áudio que inclui 24 temas musicais gravados em 1999 e interpretados pelo Coro Lopes-Graça, bem como as biografias do próprio coro, do maestro José Robert e da pianista Madalena Sá Pessoa. De uma outra série de referências, documentos e notas, difíceis de destacar, poderemos sublinhar, uma extensa tábua cronológica, uma biografia da vida de Lopes-Graça, a sua bibliografia, uma discografia exaustiva que inclui as imagens de capa, contracapa e ficha técnica, uma iconografia devidamente legendada de Lopes-Graça ou um texto denominado “Fernando Lopes-Graça, um mestre e um exemplo” sobre a sua matriz ideológica, da autoria de Filipe Diniz, entre muitos outros documentos. Ainda em destaque, queria referenciar a edição digital da 1ª. edição de Marchas, Danças e Canções e o auto da sua apreensão pela PIDE, o que constitui um documento histórico incontornável. Notável, a edição digital das pautas de todas as composições que estão incluídas nesta edição, a saber, as incluídas nas edições em livro e as relativas aos temas interpretados em áudio pelo Coro Lopes-Graça, bem como os poemas e letras das canções que as integram, assim perfeitamente passíveis de imprimir e sendo por isso simples e rápido a utilização da obra de Lopes-Graça, cumprindo assim a sua vontade, muitas vezes expressa, de devolver a obra aos que o inspiraram, ao povo. Através desta notável abordagem, esta edição permite um conhecimento geral da vida e da obra de Fernando Lopes-Graça, constituindo um documento imprescindível, uma digna homenagem ao seu autor e ao seu povo, ao nosso povo.
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Miguel Esteves
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(1) O designado Neo-Realismo ou Movimento Neo-Realista foi uma corrente artística moderna de realismo social que surge em meados do século XX, a partir de 1945, com um carácter ideológico da esquerda marxista, inspirado em Courbet e no Realismo do séc. XIX, que teve correspondência nas artes, nomeadamente em Portugal, na literatura, primeiro, com nomes como Afonso Ribeiro, Alves Redol, Sidónio Muralha, Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, ou Virgílio Ferreira, e depois na pintura, com Júlio Pomar, Vespeira, Lima de Freitas, João Abel Manta, Manuel Filipe, Júlio Resende ou Álvaro Cunhal, ou ainda na escultura com Arlindo Vicente ou Jorge Vieira. Em Portugal, os Neo-realistas surgem na sequência do Primeiro Modernismo e da Exposição do Mundo Português de 1940, antecedendo o movimento Surrealista português de 1947. Apesar do neo-realismo estar intimamente ligado aos ideais comunistas, de defender uma arte de intervenção social e política que fale do povo e para o povo, não sofreu orientações ou restrições formais nesse âmbito, nomeadamente por parte do partido comunista português, pelo que se considera um movimento mais abrangente, de reacção à realidade política e social portuguesa da época, onde muitos dos artistas e intelectuais neo-realistas seriam ou não comunistas, todos no entanto reunidos contra uma ditadura e em torno de uma expressão única de revolta contra a realidade vigente. Após a Segunda Guerra Mundial, a industrialização do século XX deixou evidenciadas as diferenças económicas e sociais entre os donos dos meios de produção e os trabalhadores, e os escritores neo-realistas constituem-se sobretudo como activistas políticos, tomando posição na luta de classes e denunciando as desigualdades sociais e o arbítrio do poder instituído das elites económicas. A afirmação de que o neo-realismo foi a tradução possível de realismo socialista não é totalmente correcta. Fruto da crise económica de 1929, e associada em Portugal ao movimento de resistência democrática, surge na década de 30 como uma nova tendência para a literatura de crítica social, revalorizando a corrente literária do Realismo.
(2) in Marchas, Danças e Canções, prefácio, 1ª. edição, Seara Nova, 1946
(3) in Marchas, Danças e Canções, 2ª. edição, nota à 2ª. edição, Edições 1 de Outubro, 1981
Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 19, Janeiro / Fevereiro / Março de 2008; © Som Livre, 2007; título: Geografias - Júlio Pereira

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GEOGRAFIAS




Geografias
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PONTOS CARDEAIS, OUTRAS LUZES E SINAIS.
PLANÍCIES E PLANALTOS. GELOS, AREIAS, SAVANAS.

ROMEIRO DE CONTINENTES E MARES.
LUGARES E UNIVERSOS.

SEM BÚSSOLAS, SEXTANTES E AZIMUTES.
SEM ESTRELAS POLARES E ALGUNS NORTES.

NA VIAGEM, SER O MESMO E O OUTRO.
ESTRANGEIRO EM TODOS OS LU(G)ARES.

A música instrumental tem sido ao longo do tempo de existência desta rubrica o género mais vezes apresentado. Dir-se-ia que por preferência do seu autor, mas a verdade é que a excelência dos trabalhos que vão sendo editados nesta área têm revelado um verdadeiro talento produtivo das terras lusas, que poderia e deveria ombrear em termos do seu impacte editorial com o que melhor se faz no mundo. Diremos que o nossa capacidade editorial e a consequente dinâmica promocional deixam-se ficar muito atrás do nível a que estes corações produtores nos têm habituado, e nestes termos, no que concerne ao universo da música instrumental, até a desculpa da língua, não serve. Não é por isso a principal preferência deste vosso amigo, simplesmente a qualidade evidenciada nos trabalhos instrumentais que nos vêm às mãos é por demais evidente. Os instrumentos de corda, talvez por muitas vezes incluírem um carácter mais popular, têm sido as estrelas da companhia, leia-se da rubrica, do Sul da Música, tocadas por mãos eruditas e elevados para um patamar exclusivo dos grandes mestres e obras. Inclusivamente, não é a primeira vez que falamos, por exemplo, do bandolim... mas que fazer, se à nossa frente encontramos aquele que por muitos tem sido considerado um dos maiores expoentes da nossa música instrumental, que o é sem dúvida, um dos mais importantes compositores e o grande responsável por alguns dos mais significativos trabalhos da música instrumental portuguesa, onde por exemplo, poderemos encontrar a viola braguesa e o cavaquinho, entre outros, e claro está, mais uma vez, o bandolim. Falamos de Júlio Pereira e o seu mais recente trabalho, Geografias. Que fazer então, senão debruçarmo-nos em mais um espantoso trabalho deste compositor, que não ouvíamos há já algum tempo e que regressa, cada vez menos nosso, cada vez mais universal. Júlio Pereira e Geografias, confirmam o seu talento multifacetado, partindo com o bandolim, talvez de uma qualquer terra pátria, a sul, para uma viagem, sem fronteiras, revelando a maturidade do verdadeiro viajante, atento para as diversas realidades, sem preconceitos, comunicativo, desejoso do contacto, do estranho, mas comum e reconhecível. Uma viagem sem fronteiras, curta e intensa, ao pormenor, uma viagem dos sentidos, do olhar, atento. Junta por isso as suas próprias impressões, descomplexadas, recontextualizadas na sua própria linguagem, sem compromissos e sem intenções prévias. Nesta viagem, acompanhado pela viola acústica de Miguel Veras e a guitarra portuguesa de Bernardo Couto, Júlio Pereira, descreve um percurso, num papel branco, a pena feita bandolim, e, como num diário, cola recortes e fotografias, bilhetes. Em Faro Luso, de onde parte, envia-nos um postal a cores e carregado da ideia leve e romântica da partida. Entusiasmo, excitação. Encontramo-nos com a voz de Sara Tavares que revela a atitude da partida em tom de festa. Notável e muito apropriada a intervenção e a junção das vozes, aqui e noutros temas, que se colam admiravelmente aos instrumentos, tornando-se parte da orquestra, da composição. Terras quentes, também lusas, a sul, em Santa Moura, onde se sente o ritmo da viagem. Mais uma vez excelente a integração das vozes, desta vez com Isabel Dias. O sabor das planícies acentuado por Miguel Peixoto, nas percussões, feito companheiro de viagem ocasional. Em Colares de Luz, chegamos ao nosso primeiro ponto de chegada, e de partida. Podemos descansar, correr as ruas, também sem bússola. Parar no bar mais barulhento e refrescar as gargantas com o último vinho. De volta à estrada, à viagem, ao mistério, desta vez com o mar à vista, o som teimoso das ondas, tombando suavemente nas Areias de Sal, indolente, vagaroso, sonolento, adormecendo, à espera da chegada. Levamos um novo amigo, o Bouzouki (1) , celta, e reencontramos as nossas vozes, uma nova, a de Marisa Pinto. Finalmente, chegados, é dia de festa. Novos sabores, novos cheiros. Tábua de Romãs. Encontrámos uma feira... cores, sons, vozes, passos, corropio, novidades, curiosidades, olhos bem abertos... em Castelo Ansião. Partimos, pela Porta do Oriente. Damos um passeio pela região, ao fim da tarde. A natureza, quase familiar, é no entanto, algumas vezes, estranha e cativante. As pessoas são bonitas, ternas. Há cantos escondidos. Reencontramos o Quico Serrano, no sintetizador, que já conhecíamos de antes. Outra paisagem, urbana. Alvor Bencanta. Encanta. Bem canta. A arquitectura é suave, harmoniosa. O povo percorre as suas ruas, falando. Estranha, essa Torre Formosa... tanto que entranha! Lá do alto, avista-se toda a paisagem, o infinito, a curva do horizonte. É o último dia. A saudade já se sente. A viagem de regresso, está de partida. Despedimo-nos. Na Tua Baía, percorro o meu olhar, os meus dedos, com os meus dedos. Voltarei. Estamos de chegada, talvez ao ponto de partida. Mas mais ricos. Pisa Fronteira, para cá e para lá. Já se sonham novas viagens, talvez mais longe, ou mesmo nos becos, de cá, em Lisboa. O nosso fado!


Gostámos da viagem. Muito. Gostámos muito das vozes, dos sons. Nem sempre das percussões sintetizadas. Mas quase sempre. Às vezes também não dos tapetes. Sintetizados. De resto foi uma viagem perfeita, se é que se pode dizer isso, a não ser da próxima! Ficam-nos óptimas recordações. O álbum, de Salomé Nascimento, ficou excelente. Poderemos recordar mais vezes esta viagem, com prazer. Ficamos à espera de mais, talvez para o ano. A história desta viagem poderia ter sido outra. Poderá ser outra. É ouvir e imaginar. Cada um de nós...

Miguel Esteves


(1) O bouzouki é um instrumento de cordas muito popular na música tradicional da Grécia. Com o nome derivado da palavra Turca "Buzuk" não sofreu grandes alterações ao longo dos séculos. Foi perseguido no último século por estar associado, erradamente, á sociedade criminal na Grécia. A música tradicional relacionada com este instrumento - a Rebetika - esteve, de facto, muito tempo ligada ao mundo prisional, resultando da adaptação da música rural (em geral designada por demotiki) às condições da população urbana vinda do campo. Embora o bouzouki se tenha transformado no instrumento mais característico da rebetika (proveniente da grande família balcânica das tambouras), a verdade é que a elementar baglama, que ainda hoje está para o bouzouki como a viola para a guitarra no fado, resulta da invenção de um instrumento que acompanhasse as canções dos presos, mas que tivesse simplicidade e dimensões que permitissem construi-la e escondê-la em prisões onde eram proibidas. Hoje em dia afirma-se que tocar Bouzuki e conseguir tirar do instrumento "o espelho da nossa alma" é privilégio que só alguns conseguem atingir... Nos primeiros tempos crê-se que tivessem 3 cordas duplas com afinação DAD (Ré-Lá-Ré). Hoje em dia encontram-se bouzukis de 4 cordas duplas com afinação CFAD (Dó-Ré-Lá-Ré), o que permite fundir muita da técnica contemporânea da guitarra na técnica tradicional. A título de curiosidade, é frequente encontrar o Bouzouki nas formações musicais irlandesas; tratando-se, contudo, de uma transformação do original grego, importado muito recentemente pelos grupos folk irlandeses.

Thursday, January 24, 2008

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 18, Outubro / Novembro / Dezembro de 2007; © HM Música, 2007; título: À espera de Armandinho - Pedro Jóia


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À ESPERA DE ARMANDINHO

Monday, January 14, 2008

À Espera de Armandinho

À Espera de Armandinho é o título do último trabalho discográfico do guitarrista português Pedro Jóia e bem se podia chamar à descoberta de Armandinho pela ideia peregrina e pouco frequente em terras lusas de estudar e dar a conhecer as obras de compositores portugueses, aqueles que de facto constituem o nosso património, tão rico e relevante como muitos outros, universais também, pela sua importância no património musical da humanidade. Basta para isso reconhecer as influências do fado em tantos outros géneros musicais e vice-versa. Armando Augusto Freire, Armandinho (1891/1946), como era e é conhecido, muito embora desprovido de educação musical formal, foi à sua época um músico notável, que desenvolveu uma carreira invejável, ao ponto de muitos o considerarem o pai da guitarra portuguesa (1)
. O próprio Artur Paredes, seu contemporâneo e admirador teria comentado: “era uma renda tudo o que ele tocava!”. Este autor de relevância ímpar no contexto da música portuguesa e no fado particularmente, deixou-nos uma importante e significativa obra, donde se destacam inúmeras variações e fados como o Fado Armandinho, o Fado de S. Miguel, ou o Fado Conde de Anadia. É portanto, por si só, de destacar a iniciativa, dir-se-ia num âmbito mais académico, de estudar e divulgar a obra deste português notável. Pedro Jóia, ao editar este trabalho discográfico, tomou essa difícil mas entusiasmante tarefa nas suas mãos, ou melhor, nos seus dedos, já que para além de a constituir como um significativo trabalho contemporâneo sobre a obra de Armandinho, talvez sem precedentes, transporta parte desta, directamente para a actualidade, para o mundo do séc. XXI dos sons e dos instrumentos. Pedro Jóia traduz, com excelência, a obra de Armandinho, para o seu próprio instrumento, a viola de Flamenco (2), com os riscos e as dificuldades associadas, dadas as diferenças em termos de execução dos dois instrumentos, acrescentando ainda a nota grave do bordão, normalmente entregue à viola de fado, sintetizando com toda a oportunidade e eficácia, o acompanhamento e os ornamentos e frases melódicas da guitarra portuguesa. O resultado parece-nos ímpar. A transposição da obra de Armandinho para a sonoridade da viola de Flamenco, ou melhor seria dizer, para a viola clássica, já que a execução de Pedro Jóia afasta-se, julgamos que por via das características da obra, da sua matriz flamenca e introduz uma referência erudita, é de efeito surpreendente, quando pensamos que Armandinho não tinha quaisquer conhecimentos musicais formais ou académicos. Tudo isto nos leva a considerar, mais uma vez, a genialidade de Armandinho, e a forma como se vê ou se aborda um autor e a sua obra, que não raras vezes, resultam primordialmente da intenção e da honestidade com que se faz essa abordagem, e não da qualidade da obra em si, inevitável, mas tantas vezes desconsiderada por via, como é o caso, das origens humildes do autor. Pedro Jóia ultrapassou com sobriedade este desafio e revelou, como refere Rui Vieira Nery no folheto deste trabalho, o “(...) respeito apaixonado pela letra e pelo espírito dos originais (...)” produzindo assim um “(...) álbum muito belo, cheio de encanto, intimismo e generosidade. (...)”. Quem ouvisse este trabalho sem quaisquer referências prévias diria tratar-se de uma qualquer obra erudita, para guitarra clássica, de um compositor reconhecido, o que traduz a impressão geral deste trabalho. Pedro Jóia interpreta com extrema eficácia e sobriedade a obra de Armandinho, sendo certo que qualquer alma lusa poderia e deveria reconhecer a nossa, a do fado. Sem distinção razoável entre os vários temas que interpreta, Pedro Jóia viaja por variações e fados de Armandinho, construindo um álbum sóbrio, de sonoridade pouco exuberante mas fiel ao instrumento e ao seu som acústico. Sem ser nestes termos, esmagador, enquadra-se num trabalho de cariz clássico, onde o fado e Armandinho são revelados em face de uma outra dimensão, descortinando muitas outras possibilidades e abrindo portas para o futuro assim haja vontades para o fazer, já que talento, é certo que existe, de Armandinho a Pedro Jóia, um século mais tarde... Assim se recebe o passado, com a dignidade merecida, transportando-o para o futuro, de uma outra forma, com a mesma dignidade, que é isso que o presente deve fazer..., é isso a que hoje e amanhã chamaremos cultura, à memória do passado, transportada pelo presente, para o futuro. (1891) Morreu Armandinho - O Mago da Guitarra. (2007) Renasceu para todos nós, pelas cordas de Pedro Jóia.

Miguel Esteves

(1) Sobre a guitarra portuguesa diz-nos Carlos Paredes: “O instrumento musical a que chamamos hoje “Guitarra Portuguesa”, foi inventado em Inglaterra na 2ª. metade do séc. XVIII. Surgiu como resposta à necessidade de obter do cístre, instrumento utilizado em toda a Europa Ocidental durante o Renascimento, uma sonoridade mais emotiva e volumosa, de acordo com as transformações verificadas no gosto musical da época, a apontar em alguns aspectos, para o Romantismo. Foi-lhe dado o nome de “Guitarra Inglesa” e se na aparência, pouco se distinguia do cístre, já dele profundamente diferia nas qualidades essenciais. (…) ”. Chegada a Portugal com os comerciantes ingleses do vinho do Porto, só a partir da 2ª. metade do século XIX se comprovou a sua ligação ao Fado (até então este seria acompanhado pela “Viola de Cinco Ordens de Arame”, instrumento popular muito em voga.). Ruy Vieira Nery, musicólogo, considera Armandinho responsável pelo grande desenvolvimento técnico da guitarra portuguesa do princípio do séc. XX, resultado do seu trabalho e dos avanços no desenho e nos materiais aplicados ao instrumento, em colaboração com o construtor João Pedro Grácio Jr., tornado-o um instrumento singular e típico de Lisboa, muito distinta das guitarras oitocentistas e até da sua irmã desenvolvida de maneira semelhante por Artur Paredes e Grácio. - in ADRIANO, António, Armandinho, Câmara Municipal de Lisboa (www.cm-lisboa.pt), Comissão Municipal de Toponímia, Lisboa, 2007.
(2) A guitarra utilizada por Pedro Jóia é uma guitarra de Óscar Cardoso, que apresenta um diferente desenho e construção, não se podendo considerar, de facto, uma típica guitarra clássica ou de flamenco (informação constante no folheto do CD).