Monday, September 8, 2008

Marchas, Danças e Canções

Em 1946, conjuntamente com outros “companheiros de jornada”, Fernando Lopes-Graça leva a cabo a tarefa de editar um livro de canções, a que chamou, Marchas, Danças e Canções, então na sua 1ª. edição, e que continha uma série de poemas de importantes autores portugueses ligados ao movimento neo-realista (1), musicados então por Fernando Lopes-Graça. O livro disponibilizava tanto os poemas como as pautas relativas a cada uma das composições. Nascido segundo o próprio autor, no prefácio da edição, (...) do desejo comum de dar ao nosso povo um pequeno repertório de canções e danças, que correspondessem ao conteúdo actual da sua consciência e que ele pudesse cantar e bailar (...) (2), Lopes-Graça, dando seguimento àquele movimento politico-cultural, abrangente e significativo de uma reacção ao regime ditatorial em vigor, ao estado novo de Salazar, convida então um conjunto de autores que de alguma forma identificam e representam o movimento neo-realista e as suas preocupações, bem expressas nos textos apresentados nessa publicação. Os poemas de Armindo Rodrigues, Arquimedes da Silva Santos, Carlos de Oliveira, Edmundo Bettencourt, João José Cochofel, Joaquim Namorado, José Ferreira Monte, José Gomes Ferreira e Mário Dionísio, a sua evidente marca político-social e a conotação com o movimento neo-realista, tornam esta publicação um objecto amargo para o antigo regime, que imediatamente e na sequência da sua edição, ordena a sua apreensão pela PIDE. Fernando Lopes-Graça que inicia a sua obra de composição em 1927 com “Variações sobre um tema popular português” para só parar no final da sua existência física, em 1994 (as últimas referências de composição datam de 1992, com “Jardim Perdido” sobre Sophia de Mello Breyner Andresen), nunca deixou de ser perseguido pelo regime e este é mais um episódio da sua vida que o torna um exemplo como mestre, compositor e músico, um exemplo de coerência, coragem, verticalidade cívica, de invulgar lucidez e firmeza política, corajoso e infatigável lutador pela causa da libertação do seu povo. Uma vida de luta e persistência, expressa pelo quase imensurável legado que deixou, onde contaremos as suas composições às centenas, numa vastíssima obra que torna difícil estabelecer paralelismos no universo da composição em Portugal. Após a Revolução dos Cravos, quando, em 1980, Lopes-Graça oferece o seu livro “Marchas, Danças e Canções”, com os respectivos direitos de autor, à CGTP-IN, a central sindical fundada ainda no regime fascista, em 1970, entregando em mão esta sua publicação, já então considerada uma obra valiosa e uma raridade bibliográfica, reafirma as suas convicções políticas e sociais, reafirma a sua vontade de continuar a lutar, em pleno regime democrático, por um mundo melhor e mais justo, através da sua contribuição, do seu trabalho e arte, de novo com (...) as Marchas, Danças e Canções, a recordar tempos ominosos da nossa história contemporânea e a vontade de, através da poesia e do canto empenhados, os denunciar e vencer pela esperança num futuro livre e desoprimido (...) (3) . Esta obra, que inclui a série de composições designadas por Heróicas, permanece referencial no seu conteúdo artístico e ideológico e vê publicada a sua segunda edição, pela mão da CGTP-IN, um ano mais tarde, em 1981. Lopes-Graça deixou-nos fisicamente em 1994 e em tempo de comemoração do centenário do seu nascimento, a CGTP-IN, por iniciativa do Departamento de Cultura e Tempos Livres, promove a 3ª. edição desta obra, aqui apresentada. Conforme a nota à edição, esta (...) não traduz somente a homenagem. Lembra o homem como julgamos que ele gostaria de ser recordado: com a obra na mão de quem a canta. (...). Este facto editorial não seria tanto notícia se esta edição não representasse, mais do que uma simples reedição, uma obra completa e profunda sobre o homem e o compositor, sobre a vida de Fernando Lopes-Graça, utilizando para isso as capacidades modernas dos componentes multimédia. Com efeito e notavelmente, esta edição produzida com a chancela de Ambiguae Edições, através de um trabalho técnico e gráfico exemplar, apresenta um conjunto de documentos reunidos pela primeira vez, e que, definitivamente, dão a conhecer a grandiosa obra deste autor ímpar na cultura portuguesa e o homem que a fez nascer. Como eu próprio, muitos pensarão conhecer a obra em causa, mas fácil e rapidamente, através da presente publicação e da sua componente multimédia, constatarão que muito ficariam a dever a uma afirmação desta natureza. Com efeito, Marchas, Danças e Canções, nesta sua 3ª. edição, apresenta-nos, em livro impresso, a 2.ª edição de 1981, facsimilada, um texto de autoria do maestro José Luís Borges Coelho, e um texto inédito de Urbano Tavares Rodrigues que aborda a relação privilegiada de Lopes-Graça com os escritores e poetas. Acentuando o carácter documental desta edição, através de um CD multimédia, somos ainda brindados com uma reedição do CD áudio que inclui 24 temas musicais gravados em 1999 e interpretados pelo Coro Lopes-Graça, bem como as biografias do próprio coro, do maestro José Robert e da pianista Madalena Sá Pessoa. De uma outra série de referências, documentos e notas, difíceis de destacar, poderemos sublinhar, uma extensa tábua cronológica, uma biografia da vida de Lopes-Graça, a sua bibliografia, uma discografia exaustiva que inclui as imagens de capa, contracapa e ficha técnica, uma iconografia devidamente legendada de Lopes-Graça ou um texto denominado “Fernando Lopes-Graça, um mestre e um exemplo” sobre a sua matriz ideológica, da autoria de Filipe Diniz, entre muitos outros documentos. Ainda em destaque, queria referenciar a edição digital da 1ª. edição de Marchas, Danças e Canções e o auto da sua apreensão pela PIDE, o que constitui um documento histórico incontornável. Notável, a edição digital das pautas de todas as composições que estão incluídas nesta edição, a saber, as incluídas nas edições em livro e as relativas aos temas interpretados em áudio pelo Coro Lopes-Graça, bem como os poemas e letras das canções que as integram, assim perfeitamente passíveis de imprimir e sendo por isso simples e rápido a utilização da obra de Lopes-Graça, cumprindo assim a sua vontade, muitas vezes expressa, de devolver a obra aos que o inspiraram, ao povo. Através desta notável abordagem, esta edição permite um conhecimento geral da vida e da obra de Fernando Lopes-Graça, constituindo um documento imprescindível, uma digna homenagem ao seu autor e ao seu povo, ao nosso povo.
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Miguel Esteves
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(1) O designado Neo-Realismo ou Movimento Neo-Realista foi uma corrente artística moderna de realismo social que surge em meados do século XX, a partir de 1945, com um carácter ideológico da esquerda marxista, inspirado em Courbet e no Realismo do séc. XIX, que teve correspondência nas artes, nomeadamente em Portugal, na literatura, primeiro, com nomes como Afonso Ribeiro, Alves Redol, Sidónio Muralha, Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, ou Virgílio Ferreira, e depois na pintura, com Júlio Pomar, Vespeira, Lima de Freitas, João Abel Manta, Manuel Filipe, Júlio Resende ou Álvaro Cunhal, ou ainda na escultura com Arlindo Vicente ou Jorge Vieira. Em Portugal, os Neo-realistas surgem na sequência do Primeiro Modernismo e da Exposição do Mundo Português de 1940, antecedendo o movimento Surrealista português de 1947. Apesar do neo-realismo estar intimamente ligado aos ideais comunistas, de defender uma arte de intervenção social e política que fale do povo e para o povo, não sofreu orientações ou restrições formais nesse âmbito, nomeadamente por parte do partido comunista português, pelo que se considera um movimento mais abrangente, de reacção à realidade política e social portuguesa da época, onde muitos dos artistas e intelectuais neo-realistas seriam ou não comunistas, todos no entanto reunidos contra uma ditadura e em torno de uma expressão única de revolta contra a realidade vigente. Após a Segunda Guerra Mundial, a industrialização do século XX deixou evidenciadas as diferenças económicas e sociais entre os donos dos meios de produção e os trabalhadores, e os escritores neo-realistas constituem-se sobretudo como activistas políticos, tomando posição na luta de classes e denunciando as desigualdades sociais e o arbítrio do poder instituído das elites económicas. A afirmação de que o neo-realismo foi a tradução possível de realismo socialista não é totalmente correcta. Fruto da crise económica de 1929, e associada em Portugal ao movimento de resistência democrática, surge na década de 30 como uma nova tendência para a literatura de crítica social, revalorizando a corrente literária do Realismo.
(2) in Marchas, Danças e Canções, prefácio, 1ª. edição, Seara Nova, 1946
(3) in Marchas, Danças e Canções, 2ª. edição, nota à 2ª. edição, Edições 1 de Outubro, 1981

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