Thursday, April 5, 2007

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 7, Maio / Junho de 2005; © AudioPro, 2000; título: vOZES DO sUL


vOZES DO sUL
vOZES DO sUL

“Depois do apelo obstinado da cigarra, no tempo de espera da calma do fim da tarde em que uma brisa apressada agita as searas e os corpos unidos no ombro contra ombro, a voz única e poderosa do cante eleva-se como um grito irreprimível, numa teimosa afirmação de identidade e dignidade cultural do povo do Alentejo” (Claúdio Torres, in vOZES DO sUL, Ed. Capella).


Um excerto do texto, da autoria de Cláudio Torres, que abre o libretto do trabalho discográfico que apresentamos neste número, intitulado vOZES DO sUL. Nada mais apropriado, revelador da ideia subjacente a esta produção, de Janita Salomé e das circunstâncias que o envolvem e ao Alentejo. Janita Salomé, uma voz do sul, inegavelmente, vem mostrar-nos neste trabalho, pouco catalogável, de fusão a etnográfico, o essencial de uma velha questão, sublinhando a teimosa afirmação cultural, mas levantando as questões que cada vez mais se nos colocam, no presente do Alentejo. Mostrando caminhos de uma forma mais ou menos instintiva, mais ou menos provocatória, faz-nos lembrar o princípio, com os Cantadores do Redondo, em ”cavaleiro real”, depois, em “extravagante”, muito à semelhança dos seus primeiros trabalhos. Traz-nos o alto, com as ideias dos gaiteiros e da sanfona de Carlos Guerreiro, logo na abertura com “ao romper da bela aurora” e depois em “eu hei-de amar uma pedra”. Traz-nos vozes da modernidade com Filipa Pais ou Catarina Salomé, sons do erudito com o piano de Jens Thomas em “na rama do alecrim” ou com percussões e os clarinetes de Daniel Salomé em “reis” ou como em “menina florentina”, através da guitarra de Mário Delgado, ou com as cordas de António Barbosa, Pedro Teixeira da Silva, Nuno Flores e Carlos Faria em “silva que estás enleada”, ou magnificamente, por Carlos Bica, com os seus arranjos e o contrabaixo em fusões perfeitas, bem juntas com os sons do Alentejo, mediterrânicos como afirma Janita, de garrafas, adufes e bendires, e até, o cante mais puro, em ”água do céu cais pura”, “salsa verde” e “meu alentejo querido”, no feminino, em “castro terra de amores”. Finalmente um documento raro, a viola campaniça de Manuel Bento e o tradicional “cante do baldão” com os improvisadores José Guerreiro, Leonel Guerreiro e António José Bernardo. Tudo isto, colocando o problema da sobrevivência cultural destes modos e modas. Num tempo de modernidade em que as tascas se transformam em restaurantes e cafés, com televisão e sem o vinho novo, quando o trabalho do assalariado rural e o seu lamento vai desaparecendo, Janita reafirma a sua existência, que longe de negar raízes, vem relembrar-nos que a tradição transporta em si mesmo um carácter renovável, que deve ser semeado, com as novas gerações e de acordo também com a sua própria realidade, gerações que nascem e que prosseguirão conforme o seu legado, de acordo com a memória, livrando-nos da amnésia. Trazer os sons, as suas gentes e a cultura do Alentejo para a modernidade, da forma que este trabalho o consegue, parece ser a resposta evidente e única. A tradição do passado, que é sempre do passado, tem que sobreviver no nosso presente para que continue sempre no nosso passado. Janita com este trabalho “(..) lança o mote (...)” e traz-nos “(...) as raízes ainda vivas de outros tempos e memórias (...)”, mas mais do que isso, transporta tudo isto para o nosso presente. No despertar serôdio destes ventos apenas ficamos com o lamento do fim de tarde que se aproxima, rápido, e a irresistível vontade de perpetuar o seu cante, as campaniças, bilhas e garrafas, numa outra roupagem com que as nossas gentes se vistam.

Miguel Esteves
site oficial em artesdoespectaculo.com.sapo.pt