Tuesday, March 9, 2010

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 24, Abril / Maio / Junho de 2009; © Ambiguae Edições, 2008; título: coisas do ser e do mar Contrabando ®

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CONTRABANDO coisas do ser e do mar

CONTRABANDO . coisas do ser e do mar

O grupo Contrabando lança o seu segundo álbum, “coisas do ser e do mar”, integralmente composto por temas originais e onde poderemos encontrar, à semelhança de “Fresta”, o primeiro espreitar do grupo neste universo, interpretações de grandes poetas lusos, como sejam, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Branquinho da Fonseca ou Ary dos Santos. O grupo mantém assim a ideia que determinou a sua existência e o seu nascimento, de dar voz à poesia, aos grandes textos... e afinal, porque não? Afinal é ou não a nossa pátria a nossa língua, somos ou não uma pátria de poetas e escritores? Aqueles que pensam para nós, por nós, que nos pensam, que nos apelidam, e que afinal nos pretendem definir numa aldeia global, mas aldeões, globalmente iguais, ocidentais, civilizadamente convenientes e semelhantes, afinal, não conhecerão a pátria de Pessoa. Esses, que insistem em nos convencer, que o melhor é uma mensagem numa garrafa, escrita num papel branco, vazio, em branco. Nada contra as canções com mensagens simplificadas, vazias de conteúdo, género fastfood, mas tudo a favor de, também, cantarmos a nossa poesia, inquestionavelmente brilhante. Uma questão de gosto, diria. Em desacordo com uma cultura global, definida algures, onde só o que corresponde ao padrão dos FMI’s, das Unesco’s e outros i’s ou esco’s, é que deve ser reconhecido, com sucesso, e por oposição, em favor da ideia da igualdade na diferença, multicultural, assumindo assim a pátria ancestral de Fernando Pessoa. E de Camões. E de tantos outros. “A minha pátria é a minha língua”. Compreendê-la e ao seu próprio desígnio, é assumi-la, com orgulho, na sua diversidade, legada também por outros povos, que a enriquecem, desde sempre, esta língua, como uma expressão própria, de uma cultura diversa, universal, e viva. Para isso temos que nos lembrar. As “coisas do ser e do mar” trazem-nos essa lembrança. O Contrabando, assim nos faz lembrar, com originalidade, a verdadeira riqueza desta língua, e que para cantá-la isso não significa abdicar do linguajar próprio do povo, assim espalhado pelo mundo e afinal tão bem interpretado pelos seus poetas e escritores. Não precisamos de simplificar as coisas para nos percebermos. Somos nós, afinal, que nos cantamos. O Contrabando, parecendo fazer juz ao seu nome, ao invés, parte para um projecto que nos traz a nossa própria lígua, nos seus mais belos trajes, quase marginalizada, pelos que a renegam. Em Mar Português, com Fernando Pessoa, perguntam, se “valeu a pena?”. Respondem, a si mesmos, por todos nós, “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”. E é com alma que este trabalho discográfico se nos apresenta afirmando o melhor da nossa língua. Sem complexos, o trabalho leva-nos numa viagem, pela poesia, pela sua musicalidade, interpretada em voz, em violas campaniças, em sons da modernidade. “(...) é um canto a pairar / Como o vento sobre o mar”... como uma brisa que percorre sons, empurrando para trás, levemente, os cabelos soltos, aqui e ali, com um arrepio, de magia. A interpretação singular da voz, uma secção rítmica consistente, as guitarras e as particulares construções harmónicas, numa intervenção original e singular, determinante das suas próprias fronteiras, na igualdade e na diferença, inevitável, obrigatório, único. São sons da lusofonia e a ideia de uma nova música portuguesa, gerada no seio dos seus compositores, poetas, autores, músicos, numa qualquer paisagem portuguesa, multicultural e cheia das influências do império. “Que melhor que isto tudo / é ouvir, na ramagem / aquele ar certo e mudo / que estremece a folhagem”.

Miguel Esteves