Wednesday, September 19, 2007

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 17, Julho / Agosto / Setembro de 2007; © Ovação, 2006; título: Tempus - Custódio Castelo


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TEMPUS
Tempus


Custódio Castelo é sem dúvida uma das referências indiscutíveis da renovação da guitarra portuguesa nas últimas duas décadas...”. De Ruy Vieira Nery, este texto de abertura do folheto que integra o disco compacto a solo do guitarrista Custódio Castelo, constitui talvez a forma mais apropriadamente sintética com que poderíamos apresentar este trabalho discográfico, instrumental, de seu nome, Tempus. Conhecido no meio artístico do fado a propósito das inúmeras colaborações com artistas de renome como Mísia, Camané, Carlos do Carmo e até Amália Rodrigues, entre outros, e mais recentemente, com acentuada evidência, a propósito das suas prestações como compositor e intérprete excepcional da guitarra portuguesa, facto inteiramente justificado e perfeitamente ilustrado com a edição no Benelux em 2003, com significativo sucesso, de alguns dos temas presentes neste álbum, ou ainda com o seu desempenho em “O descobridor”, onde a partir de composições suas, Cristina Branco canta a poesia de Jan Jacob Slauerhoff, um dos mais importantes escritores holandeses do princípio do séc. XX. Custódio Castelo traz-nos neste seu trabalho a solo o seu particular e genial entendimento sobre este instrumento luso, transportando-o para outra dimensão onde talvez só Carlos Paredes tenha estado e aí colocado a guitarra portuguesa. Onde Carlos Paredes nos mostrou a sua técnica e emoção, Custódio Castelo acrescenta erudição e recoloca o instrumento num plano técnico superior, através da composição de harmonias complexas, de elevado grau de dificuldade de execução, transportando a guitarra portuguesa para um padrão universal onde poderíamos encontrar outros exemplos, com outros instrumentos, na área do jazz, da música clássica, do tango... Astor Piazzolla, Richard Galiano, Béla Fleck, Paco de Lucia, entre muitos outros, tiveram a particularidade de dar a conhecer ao mundo, universal, aquilo que era apenas de alguns, pertença das culturas restritas de povos ou regiões, através do trabalho apurado que tiveram sobre os seus instrumentos ou género musical. Depois de Carlos Paredes, Custódio Castelo permite-nos pensar que este trabalho não foi em vão, muito pelo contrário, e aqui temos a guitarra portuguesa no seu melhor, em termos da composição original, da técnica de execução, da harmonização, por fim, da emoção que este instrumento nos traz e a todos aqueles que sentem as vibrações extraídas e a energia liberta, que eleva e dignifica todos os que a tocaram. É o que se sente, honrando o mestre Carlos Paredes na faixa seis do álbum, em “Homenagem a Carlos Paredes”, onde de alguma forma consagra todos os que lhe passaram os dedos e que a trouxeram até aqui, ao presente. No que se refere às composições apresentadas neste álbum, poderia dizer-se que Custódio Castelo transporta-nos numa viagem no espaço e no tempo, diga-mos, no tempus, apresentando uma variedade temática que nos leva do fado mais evidente, como em “Velho Fado de Lisboa”, quase tradicional, ou do “Fado do Monte” e “Ritus”, mais contemporâneos, até à morna, em “Quase Morna”, interpretando-a magistralmente, e onde também toca viola e viola baixo, como que nado nos mares do sul e criado em danças quentes e bares com cheiro a grogue. Por outra vez, entreolhando Carlos Paredes, com emoção, em “Múrmúrios do Silêncio”, também Coimbra... e tango e fado, em “Dança em Tango” ou ainda, nos canais de “Amesterdam” e nas ruas escuras, das mulheres e da noite, do acordeão. Quase sempre com melodias intensas, de alma atlântica, como em “Tempus”, o tema que dá nome ao álbum, mais terno e suave em “Ausente”, ou em viagem, nas “Terras do Pó”, hesitante, com pressa, nem sempre... passa por criações mais interiores bastante mais contemporâneas e reveladoras de outras influências, universais, no género e na forma, onde sobressai uma composição e interpretação mais erudita, exploratória e inovadora, como em “Converza”, “Sinos de Waibel” e “Arc’antica”. De uma maneira ou de outra poderemos viajar neste trabalho experimentando sensações, vindas dos sons e da mágica guitarra portuguesa, operada por dedos mágicos, num gemido também português e assim feito tempo, sem tempo.


Miguel Esteves
Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 15, Janeiro/Fevereiro de 2007; título: Tuniko Goulart - Karoço


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KAROÇO

Karoço

Conhecido de outras andanças, o autor e o trabalho que abordamos neste número, já nos é de alguma forma familiar, nomeadamente a propósito do álbum Choro de Longe de Edu Miranda, já abordado nesta revista e nesta coluna, onde empresta alguns dos seus temas e a sua prestação como músico. Estamos a falar de Tuniko Goulart e do seu mais recente trabalho de composição Karoço. Se já conhecíamos alguns dos temas presentes, apresentados então na versão de chorinho e se este Karoço vem mais uma vez comprovar-nos que a música se constitui, intrinsecamente, na sua génese, transversal a géneros e culturas, num mundo cada vez mais globalizado, a verdade é que a abordagem é simplesmente diferente. Com arranjos e orquestrações elaboradas, esta obra instrumental apresenta-nos um conjunto de composições originais, muito bem vindas, performances artísticas e musicais de peso, colaborações de qualidade, num resultado final muito interessante e evoluído, onde apenas a secção rítmica, por algumas e poucas vezes, nos pareceu captada e sonorizada de uma forma algo mecanizada e menos acústica, denotando a única fraqueza encontrada, quanto a nós, e indicando por outro lado, um trabalho mais solitário e eventualmente mais profundo na composição. Nota menos positivas para a ficha técnica, já que não inclui qualquer referência ao autor dos temas e dos arranjos, obrigatória para quem pela primeira vez contacta com o trabalho, ainda que, adivinhando a autoria de Tuniko Goulart. Finalmente, na sua forma geral e não nos conteúdos particulares, ficamos com a sensação de que a obra poderia ser mais homogénea, afastando a ideia de uma demonstração das capacidades técnicas e artísticas do autor, e noutra perspectiva, em oposição, iluminando mais fortemente a alma do autor, evidenciando o conjunto das composições criadas como uma peça única, uma obra una, menos profícua em géneros, mais consistente e melhor alicerçada na especificidade de algumas das composições e arranjos apresentados. Encontramos em Karoço um privilegiado sentido criativo, heterogéneo, que nos traz elementos diversos às composições, como são exemplo, algumas inspirações nas raízes musicais brasileiras, evidentemente, como as do baião (1)
, Nordestinas, caso da terceira faixa do álbum, justamente intitulada “Baião Nosso”, também influências contemporâneas do jazz e da música popular urbana, sendo que, no essencial, o que é evidenciado, é um trabalho original de composição, de fusão de várias matrizes, quer rítmicas quer melódicas, resultado das influências intrínsecas ao músico, como aliás é próprio em qualquer compositor contemporâneo, ou não. Poderíamos destrinçar ritmos brasileiros, como o já referido baião, outros mais lusitanos, como é o caso da utilização da bilha de barro na faixa “soluço”, ou as guitarras bem jazzísticas a lembrar Pat Metheney e algumas percussões ao jeito de Future Man (Flecktones), ou ainda, como em “só na mãnha” ou em “tem baile sim”, com lágrimas de choro, do bandolim, e algum calor de samba. Poderíamos evidenciar o tom clássico de “ligo amanhã” ou o tom jazzístico de “bossa berê”, mais eléctrico como em “daqui a pouco” ou ainda o tom de samba rock, anos 30, aplicado ao “carldinho de mocotó”, isto tudo, sem retirar pitada da qualidade criativa exibida e sem menorizar de qualquer forma o trabalho realizado, bem pelo contrário, já que tudo isto poderia ser dito, nomeadamente a respeito das influências notadas em cada obra, a propósito de todos os compositores considerados consagrados, inclusivamente daqueles que aqui referimos. Pelo contrário, este trabalho, de grande qualidade artística e de imensa consistência na sua execução instrumental, revelam-nos um músico de nível universal, infelizmente sujeito também ele às mesmas regras de mercado que tantas vezes senão quase sempre, deturpam e escondem as verdadeiras pérolas que temos tentado mostrar, em tantas outras ocasiões nesta rubrica, e que tantas vezes sublinhámos. As influências de cada músico apenas nos indicam um percurso de crescimento e o elemento de afirmação onde as composições e a sua originalidade constituem o verdadeiro carácter de uma obra, não as matrizes estéticas às quais se ligam, ainda que de forma indelével, remisturada e reinventada.

Miguel Esteves

(1) Baião. Dança e canto típico do Nordeste, inicialmente era o nome de um tipo de festa, onde havia muita dança e melodias tocadas em violas. Este género musical que era restrito ao sertão nordestino, passou a ser conhecido em todo Brasil, por intermédio do sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga, quando gravou em 1946, seu primeiro grande sucesso Baião. A partir daí e até meados da década de 1950, este ritmo tomou conta do Brasil e vários artistas começaram a gravar o baião, que foi transformado em música popular urbana através do trabalho de Luiz Gonzaga considerado o "Rei do Baião" e de Humberto Teixeira, chamado "O doutor do baião". O baião teria nascido de uma forma especial dos violeiros tocarem lundum na zona rural do Nordeste estruturando-se em seguida como música de dança, com o seu ritmo binário e as suas melodias a fazerem muito sucesso no nordeste. O grande divulgador e fixador do baião cantado como género de música popular brasileira foi ainda Luiz Gonzaga. O baião, que só perdeu o seu reinado com a aparecimento da bossa nova, ainda faz sentir a sua influência em muitos compositores contemporâneos.
Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 13, Março/Abril de 2006; © Helena Caspurro, 2003; título: helena caspurro mulher avestruz



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mulheravestruz
helenacaspurromulheravestruz

Viver com prazer. A poesia e a música encontram-se no prazer, no lugar onde sempre deveriam coexistir. Helena Caspurro foi a mais recente surpresa no universo produtivo que tantas vezes elogio nesta rubrica, testemunho deste lugar estranho, a ocidente, onde contra todos os ventos e marés, uma inevitável e inegável vontade de partir se sobrepõe a tudo o resto, quase parecendo que assim é e que deveria ser este, o terreno mais fértil e mais propício para a criação... tentação de pensar assim, que a ser verdade ou a ser considerada como tal, nos levaria à tentativa ilógica e antagónica de elevar ao impossível as condições de produção artística, na forma de encontrar os seus melhores frutos, mais pequenos, é certo, mas muito mais saborosos. De alguma forma, como quem evita dar água à vinha, sabendo assim guardar o seu açúcar, prevendo o melhor néctar à saída das pipas, o melhor e mais intenso vinho... não fosse o caso de conhecer-mos outros universos produtivos, leia-se outros países, outros contextos culturais, que à muito entenderam esta realidade, de uma indústria que como todas as outras pode e deve contribuir para o seu próprio bem-estar cultural e económico, e entendido assim, protege e incentiva os seus corações produtores, os seus criadores. Sem que isso deva significar de algum modo, qualquer forma de xenofobia cultural, o que também e infelizmente, muitas vezes, acontece, já agora, enalteçam os nossos artesãos do sonho, apenas criando e propiciando reais condições de igualdade de oportunidades, sem perder uma das grandes virtudes deste nosso lugar, a ocidente, permanentemente e sinceramente aberto ao exterior e ao que lá se produz. É claramente a descrição de um universo onde teríamos acesso generalizado ao prazer de encontrarmos estes frutos e de os poder escolher, provar e partilhar. Resta-nos acreditar na existência de uma dimensão paralela, da sua construção, aqui e no presente, onde haverá espaço para estes maravilhosos frutos, para todos eles. Helena Caspurro, a Mulher Avestruz, título deste álbum e do primeiro tema nele incluído, traz-nos este fruto novo, elegante, intenso e de sabor levemente picante, muito ligeiramente ácido, adstringente e com prova surpreendentemente rápida, com um final leve e ao mesmo tempo inesquecível. Revela-se-nos no seu intimo, à sua poesia, conta-nos do prazer, de viver, que (...) o saber está por viver, viver com prazer (...). Piano e voz percorrem este trabalho, com fluência e intimidade, onde palavras e notas se entrelaçam, jorrando como um improviso, do fundo da alma. Tratando-se evidentemente de uma pianista extremamente dotada, a sua voz completa o que as mãos não dizem, como um só instrumento, uma só expressão, uma só voz, porque (...) há palavras que só se esgotam quando não são apenas ditas... e há o que não se pode dizer por palavras (...). Helena Caspurro escreve assim neste trabalho, quanto a mim, resumindo clara e sucintamente o que aqui nos traz. Graficamente, ressalvando o facto de no folheto que acompanha este álbum, a poesia escrita nem sempre estar tão legível quanto merece, este trabalho acompanha toda a imensa qualidade demonstrada, formando um conjunto imperdível. Mulher Avestruz inclui quatro temas, além daquele que dá título ao álbum, a saber, Satíria, onde reafirma toda a sua poesia, uma tal maneira de estar, de ser! Oh p’ra ela, (...) um perlimpimpim (...) que perdeu (...) o amor por ti (...), que ganhou (...) um gostar de ti (...). Em Corpus, terceira faixa do álbum, é o piano que domina integralmente todo o tema, fruição absoluta, porque a música não se diz. (...) e, se numa tentativa de definir por palavras o que não se pode dizer apenas, ainda dissermos que a música fala, estamos talvez em êxtase no mundo simples das metáforas (...). Por fim, em l-o-v-e you, temos um jazz, com alma de blues, com alguns sabores tropicais, misturas dos dois lados do oceano, aqui e ali, explorando uma sonoridade mais simples, mais reconhecível, de partes de memórias, de invocação a outras divas, dando mais espaço ao improviso (...) que o improviso é como o falar dos poetas (...), a vocalizos e respirações, familiares. É assim, a Mulher Avestruz. Fim.
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Miguel Esteves
Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 12, Março/Abril de 2006; © Zona Música, 2005; título: Cacus José Peixoto e Carlos Zíngaro



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CACUS
CACUS
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Cumprindo uma ideia subjacente à rubrica Sul da Música, esta ideia peregrina de divulgar e falar de trabalhos discográficos que pela sua qualidade mereçam um destaque evidente, independentemente do destaque comercial a que estão ou foram sujeitos, é no caso do presente número por demais óbvia e mais uma vez justifica inteiramente a existência deste espaço, do próprio projecto editorial, ainda para mais se tivermos em conta, o que, em termos quantitativos, significa o baixo nível da produção de música nacional ao invés do elevado nível da nossa capacidade artística que teima em renascer das cinzas deixadas por um elevado despudor e desconsideração por parte de muitos agentes responsáveis, políticos e sociais, da comunicação social dita generalista e comercial, nomeadamente a radiofónica, ou seja, geralmente preconceituosa e afunilada, saloia e agarrada aos cânones e estímulos, muitos deles infundados, do que vem do istrangêro!! Senão vejamos! Cacus é o título de um álbum de 2005 que junta dois músicos excepcionais, o que, só por isso, valeria o destaque... não que seja totalmente desconhecido, mas penso que poucos o terão ouvido ou dele ouvido falar, demasiadamente poucos!? Não é certamente um trabalho comercial, subentendido, para aquelas massas, mas quando José Peixoto e Carlos Zíngaro, decerto conhecidos de todos ou da tal maioria esclarecida e culta, se juntaram para produzir e realizar este trabalho, algo mais deveria ter surgido acima do multicolor do evidente, em sintonia com um trabalho discográfico, que no mínimo revela uma maturidade performativa e artística ao nível de poucos no mundo. A excepcionalidade deste trabalho, por si só, mereceria outro destaque. A sua audição não será fácil para a maioria das pessoas menos dadas a uma certa contemporaneidade na música, mas poucos poderão não reconhecer o virtuosismo, a harmonia e as qualidades deste trabalho. Os temas presentes neste trabalho, numerados de um1 a trezeI3 revelam desde logo uma condição conceptualista onde o som é o elemento per si, o explorado e o explorador apenas e somente através da linguagem que constituem em si mesmos e que subsiste apenas e somente, consequentemente, através disso mesmo, dessa mesma linguagem... só os sons e a forma como se ligam entre si parece constituir a fronteira de um trabalho que, inevitavelmente, quase sempre parece querer ultrapassar essas mesmas fronteiras. A guitarra de Peixoto e o violino de Zíngaro, nem sempre sós, mas essencialmente unos e indivisíveis, omnipresentes, comunicam sempre através dessa linguagem musical, criando imagens sonoras, quase sempre intensas, quase sempre limiares, transportando-nos para um universo resultante de uma criação imaginativa à qual poderemos dar sentido, um certo sentido, nosso... deserto, caminho, sexo, quotidiano, rua, ruído... e todos os outros! Com uma qualidade de captação sonora irrepreensível e um perfeccionismo exemplar colocado na composição e na interpretação, tudo nos transporta para qualquer lado. No tema de abertura do álbum, um1, poderemos encontrar-nos num qualquer oásis, registando as nossas influências árabes num tom mais claro e quente, ao som das guitarras do sul, ao engano da miragem... os sempre presentes elementos repetitivos, obstinados, o violino soprado, transporta-nos para o deserto, nada que a sede não nos traga. Quase sempre mais conceptuais, como em dois2, oito8, nove9 ou treze13, Peixoto e Zíngaro deixam-nos ainda assim, algum espaço para viajar e para descansar, também com temas mais melodiosos e “cantabile” como o seis6. É no entanto na originalidade, na concepção arrojada, na execução primorosa e cuidada, intencional, perspicaz, aguda, fotográfica, que este trabalho se revela e ao alto nível dos seus executantes. Talvez porque advém de um percurso que não se inicia nem se termina num dia, revela o doce sabor da inconsequência, do prazer do fazer, sem mais nada... de onde surge esta intensidade, a solidão, a cumplicidade, provavelmente todos saberemos, ou melhor, todos teremos sabido... por isso mesmo, ainda e sempre, nós vos lembramos, adormecidos... ao alcance de uma inevitável multidão de insectos... nove9.

Miguel Esteves

Tuesday, September 18, 2007

Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 10, Novembro / Dezembro de 2005; © Edu Miranda, 2003; título: Edu Miranda - Choro de Longe


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CHORO DE LONGE
Edu Miranda Choro de Longe
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Por esta altura já com um segundo trabalho em fase final de produção, tornou-se imperativo apresentar o autor e músico Edu Miranda através do seu primeiro trabalho discográfico, que chegou ao público numa edição de autor, de 2003, mas que, pela qualidade que apresenta, quer no que se refere às composições interpretadas, da autoria do próprio Edu Miranda e de Tuniko Goulart, que normalmente acompanha e executa o violão, quer pela execução primorosa de ambos, ao sabor e ao saber dos dois únicos instrumentos utilizados, o violão e o bandolim, merece o destaque que nesta oportunidade lhe dedicamos. Com a utilização simples e eficaz daqueles instrumentos, "Choro do Longe" constitui no panorama musical, contemporâneo e instrumental, editado e produzido no nosso país, um interessante reaparecimento do bandolim, no género e na tradição do chorinho, bastante vulgarizado durante o séc. XX no Brasil, donde ambos os músicos são naturais e naturalmente nascidos para a música. Constitui ainda assim, um significativo exemplo do reencontro com o bandolim, na sequência também das suas próprias origens, marcadas pela tradição instrumental europeia, das cortes e salões do séc.XIX, da música tradicional portuguesa e do som negro da escravatura, renascido em forma de chorinho com o vigor que se reconhece nas terras novas do Brasil, das suas composições e autores, que o tornaram então, famoso e muito difundido. O mesmo instrumento é agora reinterpretado neste trabalho discográfico, em temas originais, num contexto diferente mas que facilmente poderia encontrar as suas próprias raízes naquele universo original e na fusão que o tempo e a história se encarregaram de fazer, na esteira de outros chorões (1), seguindo novas influências e realidades, de alguma forma prosseguindo esses passos primordiais, e reinventando-os, com um trabalho, no mínimo, muito interessante. Se na composição, rítmica e melódica, este trabalho não é de facto, arrojado e inovador, a harmonia que traduz e o exemplar encontro que estes dois músicos interpretam, tornam “Choro do Longe” uma obra de arte musical que vive só por isso mesmo, como sempre deveria ser, além de tudo, pela qualidade intrínseca e pelo prazer de audição que produzem a quem ouve, este choro... não que bastantes vezes os temas apresentados não traduzam uma sonoridade em contrário, bem atrevida e alegre, como na abertura em Sempre à Margem, ou mais contemporânea como em Karoço, ou em jeito de morna com no tema que dá título ao álbum, Choro do Longe, ou ainda feito chorinho como em Maria Migalha, ou em Forrozado com um tempero de forró. O que nos leva a ouvir incansavelmente este trabalho são os excelentes arranjos, conjuntos harmónicos perfeitos, uma qualidade interpretativa “intocável”, e um resultado final equilibrado, muito interessante, tranquilo, intenso e de elevada qualidade sonora, enfim, um óptimo exemplo de música instrumental contemporânea de raízes lusófonas... Tanto na composição como na execução, assistimos a uma perfeita sintonia entre os dois instrumentos, com o violão, mais do que a sustentar a linha melódica do bandolim, a intervir na composição harmónica, com uma presença muito forte, também muito ao género de mornas e coladeras, apresentando constantemente um desenho dos bordões criativo e discursivo, que a par dos solos do bandolim numa também muito criativa e interessante linha melódica, nos permite dizer que nada ou nenhum instrumento mais poderiam acrescentar algo ao gozo pleno dos temas apresentados. Choro do Longe apresenta composições e arranjos de ambos os músicos, que de uma forma curiosa e aparentemente natural, consegue resultar muito homogéneo, não se notando significativas diferenças no discurso criativo e sonoro final. Longe de parecer mal, este facto parece revelar um intenso trabalho conjunto na elaboração dos arranjos e a considerar o excelente resultado final, parece-nos que ambos os músicos acertaram na aposta, conseguindo um álbum digno do maior destaque, apenas contido pela inoperância e desatenção habitual do nosso mercado editorial, que tarda em despertar para os fenómenos de todo um universo de novos talentos, fragilizando uma indústria cada vez mais carente de matéria prima disponível e correspondentemente magnetizada e dependente do mercado estrangeiro do produto acabado e embalado. Indústria nacional, que como qualquer outra, tanta falta faz para o progresso intelectual, cultural e económico... da lusofonia.
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Miguel Esteves

(1) Chorões – nome dado aos que praticavam uma determinada melodia de uma forma mais emotiva, mais chorosa, que dá mais tarde origem ao género musical chorinho, designação que se vulgarizou durante o séc. XX, nomeadamente no Brasil, com o aparecimento de autores, grupos e intérpretes como Casa Edison, Oito batutas, Chiquinha Gonzaga, Pinxinguinha, Jacob do Bandolim, Luperce Miranda, entre muito outros.
Textos críticos editados na Revista Alentejo (edição bimensal da Casa do Alentejo) sobre trabalhos discográficos editados em Portugal; por Miguel Esteves. Edição n.º 9, Agosto / Setembro de 2005; título: Cantarolices - Modas à Margem do Tempo


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CANTAROLICES
Cantarolices - Modas à Margem do Tempo

O álbum que apresentamos neste número tem por título “cantarolices” e é-nos trazido pelo grupo “Modas à Margem do Tempo”. Tanto o título do trabalho como o nome deste grupo sugerem a sua própria génese e devolvem-nos o mote para este texto. Sem pretensões etnográficas e sem qualquer carácter patrimonial e histórico evidente nas composições apresentadas, este grupo mantêm-nos à margem do tempo, mas no nosso tempo e revisita as modas alentejanas tal e qual as poderíamos sentir hoje, de dentro de um outro envolvimento social e laboral, que não do resultante do trabalho na lavoura, mas de outro, claramente urbano e elaborado de acordo com essa realidade, nem por isso menos importante. Na impossibilidade física de podermos recuar no tempo, é desta forma, sem desprimor por todas as outras, original na orquestração e arranjos, que também poderemos perpetuar as nossas raízes, as de todos nós, e nitidamente as daqueles que aqui nos trazem as suas cantarolices interpretando as modas presentes neste álbum. Ao rigor das vozes mais tradicionais e mais coladas às melodias originais, da responsabilidade de José Melo e Tolentino Cabo, este trabalho acrescenta outros elementos que nos remetem para a realidade de hoje, cosmopolita e necessariamente aberta a outras influências e sonoridades. Nem sempre como no caso presente essa síntese se revela tão feliz e apropriadamente confeccionada, bem temperada e aguçada com os cheiros da região. É assim que àquelas vozes principais se juntam as harmonias das guitarras acústicas, construindo uma base sonora à qual se adiciona a bem temperada secção rítmica, muitas vezes constituída pelas percussões de Cláudio Trindade e ainda pelo acordeão de Celina Piedade ou pelo violoncelo de Susana Santos, mais por aquele, muitas vezes alternando a colocação rítmica pela harmónica e vice-versa, ao longo dos temas ou nos vários temas, traduzindo uma sonoridade muito bem conseguida, também na construção harmónica, sublinhando as melodias ou o seu contraponto. Destaque para os temas onde violoncelo ou acordeão são chamados para a primeira linha de construção dos arranjos, como por exemplo em “Pombinha Branca”, onde revelam uma expressão pouco habitual nestes ambientes e por isso muito original. Onde o apurado acerto no tempero se revela é na junção das vozes masculinas e femininas. Sem traduzir qualquer rigor na interpretação do tradicional, a verdade é que as quatro vozes se conjugam de forma excelente, constituindo esta uma das principais particularidades deste trabalho, matizado pela polifonia de vozes e instrumentos. Quase sempre os temas são iniciados pelas vozes masculinas, mas é no momento da sua união com as vozes femininas que o brilho da melodia mais se evidencia, tanto pela harmonia que criam, no uníssono, como pelo interesse que proporcionam aos temas, quando enquadram o elemento de resposta. É o caso de “extravagante” onde o tema é interpretado na primeira parte também pelas vozes femininas, em contratempo. A segunda parte deste tema, apenas interpretado pelas vozes masculinas, não seria tão evidente e conseguido sem o contraponto dado no início pelas vozes femininas, que voltam no final do tema. Quando conjugados com a qualidade das melodias alentejanas, este conjunto de factores e sabores complexos, de difícil tempero e equilíbrio, criam um som original, mais evidente nos temas onde tudo isto se concretiza de forma exemplar como na “moda do manageiro” ou em “a ribeira”. Por último, duas notas. A primeira para as representações em barro da “Oficina da Terra” que muito agradaram e a segunda para a ficha técnica, demasiado pobre e resumida, aquém do que o trabalho, produto da região, merece, nomeadamente no que se refere às datas de edição ou à informação sobre os temas interpretados. Ficamos á espera do próximo trabalho, na expectativa da confirmação deste som e do apuramento das suas qualidades, made in Alentejo.



Miguel Esteves