Wednesday, September 19, 2007

CACUS
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Cumprindo uma ideia subjacente à rubrica Sul da Música, esta ideia peregrina de divulgar e falar de trabalhos discográficos que pela sua qualidade mereçam um destaque evidente, independentemente do destaque comercial a que estão ou foram sujeitos, é no caso do presente número por demais óbvia e mais uma vez justifica inteiramente a existência deste espaço, do próprio projecto editorial, ainda para mais se tivermos em conta, o que, em termos quantitativos, significa o baixo nível da produção de música nacional ao invés do elevado nível da nossa capacidade artística que teima em renascer das cinzas deixadas por um elevado despudor e desconsideração por parte de muitos agentes responsáveis, políticos e sociais, da comunicação social dita generalista e comercial, nomeadamente a radiofónica, ou seja, geralmente preconceituosa e afunilada, saloia e agarrada aos cânones e estímulos, muitos deles infundados, do que vem do istrangêro!! Senão vejamos! Cacus é o título de um álbum de 2005 que junta dois músicos excepcionais, o que, só por isso, valeria o destaque... não que seja totalmente desconhecido, mas penso que poucos o terão ouvido ou dele ouvido falar, demasiadamente poucos!? Não é certamente um trabalho comercial, subentendido, para aquelas massas, mas quando José Peixoto e Carlos Zíngaro, decerto conhecidos de todos ou da tal maioria esclarecida e culta, se juntaram para produzir e realizar este trabalho, algo mais deveria ter surgido acima do multicolor do evidente, em sintonia com um trabalho discográfico, que no mínimo revela uma maturidade performativa e artística ao nível de poucos no mundo. A excepcionalidade deste trabalho, por si só, mereceria outro destaque. A sua audição não será fácil para a maioria das pessoas menos dadas a uma certa contemporaneidade na música, mas poucos poderão não reconhecer o virtuosismo, a harmonia e as qualidades deste trabalho. Os temas presentes neste trabalho, numerados de um1 a trezeI3 revelam desde logo uma condição conceptualista onde o som é o elemento per si, o explorado e o explorador apenas e somente através da linguagem que constituem em si mesmos e que subsiste apenas e somente, consequentemente, através disso mesmo, dessa mesma linguagem... só os sons e a forma como se ligam entre si parece constituir a fronteira de um trabalho que, inevitavelmente, quase sempre parece querer ultrapassar essas mesmas fronteiras. A guitarra de Peixoto e o violino de Zíngaro, nem sempre sós, mas essencialmente unos e indivisíveis, omnipresentes, comunicam sempre através dessa linguagem musical, criando imagens sonoras, quase sempre intensas, quase sempre limiares, transportando-nos para um universo resultante de uma criação imaginativa à qual poderemos dar sentido, um certo sentido, nosso... deserto, caminho, sexo, quotidiano, rua, ruído... e todos os outros! Com uma qualidade de captação sonora irrepreensível e um perfeccionismo exemplar colocado na composição e na interpretação, tudo nos transporta para qualquer lado. No tema de abertura do álbum, um1, poderemos encontrar-nos num qualquer oásis, registando as nossas influências árabes num tom mais claro e quente, ao som das guitarras do sul, ao engano da miragem... os sempre presentes elementos repetitivos, obstinados, o violino soprado, transporta-nos para o deserto, nada que a sede não nos traga. Quase sempre mais conceptuais, como em dois2, oito8, nove9 ou treze13, Peixoto e Zíngaro deixam-nos ainda assim, algum espaço para viajar e para descansar, também com temas mais melodiosos e “cantabile” como o seis6. É no entanto na originalidade, na concepção arrojada, na execução primorosa e cuidada, intencional, perspicaz, aguda, fotográfica, que este trabalho se revela e ao alto nível dos seus executantes. Talvez porque advém de um percurso que não se inicia nem se termina num dia, revela o doce sabor da inconsequência, do prazer do fazer, sem mais nada... de onde surge esta intensidade, a solidão, a cumplicidade, provavelmente todos saberemos, ou melhor, todos teremos sabido... por isso mesmo, ainda e sempre, nós vos lembramos, adormecidos... ao alcance de uma inevitável multidão de insectos... nove9.

Miguel Esteves

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