Wednesday, September 19, 2007

Karoço

Conhecido de outras andanças, o autor e o trabalho que abordamos neste número, já nos é de alguma forma familiar, nomeadamente a propósito do álbum Choro de Longe de Edu Miranda, já abordado nesta revista e nesta coluna, onde empresta alguns dos seus temas e a sua prestação como músico. Estamos a falar de Tuniko Goulart e do seu mais recente trabalho de composição Karoço. Se já conhecíamos alguns dos temas presentes, apresentados então na versão de chorinho e se este Karoço vem mais uma vez comprovar-nos que a música se constitui, intrinsecamente, na sua génese, transversal a géneros e culturas, num mundo cada vez mais globalizado, a verdade é que a abordagem é simplesmente diferente. Com arranjos e orquestrações elaboradas, esta obra instrumental apresenta-nos um conjunto de composições originais, muito bem vindas, performances artísticas e musicais de peso, colaborações de qualidade, num resultado final muito interessante e evoluído, onde apenas a secção rítmica, por algumas e poucas vezes, nos pareceu captada e sonorizada de uma forma algo mecanizada e menos acústica, denotando a única fraqueza encontrada, quanto a nós, e indicando por outro lado, um trabalho mais solitário e eventualmente mais profundo na composição. Nota menos positivas para a ficha técnica, já que não inclui qualquer referência ao autor dos temas e dos arranjos, obrigatória para quem pela primeira vez contacta com o trabalho, ainda que, adivinhando a autoria de Tuniko Goulart. Finalmente, na sua forma geral e não nos conteúdos particulares, ficamos com a sensação de que a obra poderia ser mais homogénea, afastando a ideia de uma demonstração das capacidades técnicas e artísticas do autor, e noutra perspectiva, em oposição, iluminando mais fortemente a alma do autor, evidenciando o conjunto das composições criadas como uma peça única, uma obra una, menos profícua em géneros, mais consistente e melhor alicerçada na especificidade de algumas das composições e arranjos apresentados. Encontramos em Karoço um privilegiado sentido criativo, heterogéneo, que nos traz elementos diversos às composições, como são exemplo, algumas inspirações nas raízes musicais brasileiras, evidentemente, como as do baião (1)
, Nordestinas, caso da terceira faixa do álbum, justamente intitulada “Baião Nosso”, também influências contemporâneas do jazz e da música popular urbana, sendo que, no essencial, o que é evidenciado, é um trabalho original de composição, de fusão de várias matrizes, quer rítmicas quer melódicas, resultado das influências intrínsecas ao músico, como aliás é próprio em qualquer compositor contemporâneo, ou não. Poderíamos destrinçar ritmos brasileiros, como o já referido baião, outros mais lusitanos, como é o caso da utilização da bilha de barro na faixa “soluço”, ou as guitarras bem jazzísticas a lembrar Pat Metheney e algumas percussões ao jeito de Future Man (Flecktones), ou ainda, como em “só na mãnha” ou em “tem baile sim”, com lágrimas de choro, do bandolim, e algum calor de samba. Poderíamos evidenciar o tom clássico de “ligo amanhã” ou o tom jazzístico de “bossa berê”, mais eléctrico como em “daqui a pouco” ou ainda o tom de samba rock, anos 30, aplicado ao “carldinho de mocotó”, isto tudo, sem retirar pitada da qualidade criativa exibida e sem menorizar de qualquer forma o trabalho realizado, bem pelo contrário, já que tudo isto poderia ser dito, nomeadamente a respeito das influências notadas em cada obra, a propósito de todos os compositores considerados consagrados, inclusivamente daqueles que aqui referimos. Pelo contrário, este trabalho, de grande qualidade artística e de imensa consistência na sua execução instrumental, revelam-nos um músico de nível universal, infelizmente sujeito também ele às mesmas regras de mercado que tantas vezes senão quase sempre, deturpam e escondem as verdadeiras pérolas que temos tentado mostrar, em tantas outras ocasiões nesta rubrica, e que tantas vezes sublinhámos. As influências de cada músico apenas nos indicam um percurso de crescimento e o elemento de afirmação onde as composições e a sua originalidade constituem o verdadeiro carácter de uma obra, não as matrizes estéticas às quais se ligam, ainda que de forma indelével, remisturada e reinventada.

Miguel Esteves

(1) Baião. Dança e canto típico do Nordeste, inicialmente era o nome de um tipo de festa, onde havia muita dança e melodias tocadas em violas. Este género musical que era restrito ao sertão nordestino, passou a ser conhecido em todo Brasil, por intermédio do sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga, quando gravou em 1946, seu primeiro grande sucesso Baião. A partir daí e até meados da década de 1950, este ritmo tomou conta do Brasil e vários artistas começaram a gravar o baião, que foi transformado em música popular urbana através do trabalho de Luiz Gonzaga considerado o "Rei do Baião" e de Humberto Teixeira, chamado "O doutor do baião". O baião teria nascido de uma forma especial dos violeiros tocarem lundum na zona rural do Nordeste estruturando-se em seguida como música de dança, com o seu ritmo binário e as suas melodias a fazerem muito sucesso no nordeste. O grande divulgador e fixador do baião cantado como género de música popular brasileira foi ainda Luiz Gonzaga. O baião, que só perdeu o seu reinado com a aparecimento da bossa nova, ainda faz sentir a sua influência em muitos compositores contemporâneos.

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