Monday, September 8, 2008

Geografias
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PONTOS CARDEAIS, OUTRAS LUZES E SINAIS.
PLANÍCIES E PLANALTOS. GELOS, AREIAS, SAVANAS.

ROMEIRO DE CONTINENTES E MARES.
LUGARES E UNIVERSOS.

SEM BÚSSOLAS, SEXTANTES E AZIMUTES.
SEM ESTRELAS POLARES E ALGUNS NORTES.

NA VIAGEM, SER O MESMO E O OUTRO.
ESTRANGEIRO EM TODOS OS LU(G)ARES.

A música instrumental tem sido ao longo do tempo de existência desta rubrica o género mais vezes apresentado. Dir-se-ia que por preferência do seu autor, mas a verdade é que a excelência dos trabalhos que vão sendo editados nesta área têm revelado um verdadeiro talento produtivo das terras lusas, que poderia e deveria ombrear em termos do seu impacte editorial com o que melhor se faz no mundo. Diremos que o nossa capacidade editorial e a consequente dinâmica promocional deixam-se ficar muito atrás do nível a que estes corações produtores nos têm habituado, e nestes termos, no que concerne ao universo da música instrumental, até a desculpa da língua, não serve. Não é por isso a principal preferência deste vosso amigo, simplesmente a qualidade evidenciada nos trabalhos instrumentais que nos vêm às mãos é por demais evidente. Os instrumentos de corda, talvez por muitas vezes incluírem um carácter mais popular, têm sido as estrelas da companhia, leia-se da rubrica, do Sul da Música, tocadas por mãos eruditas e elevados para um patamar exclusivo dos grandes mestres e obras. Inclusivamente, não é a primeira vez que falamos, por exemplo, do bandolim... mas que fazer, se à nossa frente encontramos aquele que por muitos tem sido considerado um dos maiores expoentes da nossa música instrumental, que o é sem dúvida, um dos mais importantes compositores e o grande responsável por alguns dos mais significativos trabalhos da música instrumental portuguesa, onde por exemplo, poderemos encontrar a viola braguesa e o cavaquinho, entre outros, e claro está, mais uma vez, o bandolim. Falamos de Júlio Pereira e o seu mais recente trabalho, Geografias. Que fazer então, senão debruçarmo-nos em mais um espantoso trabalho deste compositor, que não ouvíamos há já algum tempo e que regressa, cada vez menos nosso, cada vez mais universal. Júlio Pereira e Geografias, confirmam o seu talento multifacetado, partindo com o bandolim, talvez de uma qualquer terra pátria, a sul, para uma viagem, sem fronteiras, revelando a maturidade do verdadeiro viajante, atento para as diversas realidades, sem preconceitos, comunicativo, desejoso do contacto, do estranho, mas comum e reconhecível. Uma viagem sem fronteiras, curta e intensa, ao pormenor, uma viagem dos sentidos, do olhar, atento. Junta por isso as suas próprias impressões, descomplexadas, recontextualizadas na sua própria linguagem, sem compromissos e sem intenções prévias. Nesta viagem, acompanhado pela viola acústica de Miguel Veras e a guitarra portuguesa de Bernardo Couto, Júlio Pereira, descreve um percurso, num papel branco, a pena feita bandolim, e, como num diário, cola recortes e fotografias, bilhetes. Em Faro Luso, de onde parte, envia-nos um postal a cores e carregado da ideia leve e romântica da partida. Entusiasmo, excitação. Encontramo-nos com a voz de Sara Tavares que revela a atitude da partida em tom de festa. Notável e muito apropriada a intervenção e a junção das vozes, aqui e noutros temas, que se colam admiravelmente aos instrumentos, tornando-se parte da orquestra, da composição. Terras quentes, também lusas, a sul, em Santa Moura, onde se sente o ritmo da viagem. Mais uma vez excelente a integração das vozes, desta vez com Isabel Dias. O sabor das planícies acentuado por Miguel Peixoto, nas percussões, feito companheiro de viagem ocasional. Em Colares de Luz, chegamos ao nosso primeiro ponto de chegada, e de partida. Podemos descansar, correr as ruas, também sem bússola. Parar no bar mais barulhento e refrescar as gargantas com o último vinho. De volta à estrada, à viagem, ao mistério, desta vez com o mar à vista, o som teimoso das ondas, tombando suavemente nas Areias de Sal, indolente, vagaroso, sonolento, adormecendo, à espera da chegada. Levamos um novo amigo, o Bouzouki (1) , celta, e reencontramos as nossas vozes, uma nova, a de Marisa Pinto. Finalmente, chegados, é dia de festa. Novos sabores, novos cheiros. Tábua de Romãs. Encontrámos uma feira... cores, sons, vozes, passos, corropio, novidades, curiosidades, olhos bem abertos... em Castelo Ansião. Partimos, pela Porta do Oriente. Damos um passeio pela região, ao fim da tarde. A natureza, quase familiar, é no entanto, algumas vezes, estranha e cativante. As pessoas são bonitas, ternas. Há cantos escondidos. Reencontramos o Quico Serrano, no sintetizador, que já conhecíamos de antes. Outra paisagem, urbana. Alvor Bencanta. Encanta. Bem canta. A arquitectura é suave, harmoniosa. O povo percorre as suas ruas, falando. Estranha, essa Torre Formosa... tanto que entranha! Lá do alto, avista-se toda a paisagem, o infinito, a curva do horizonte. É o último dia. A saudade já se sente. A viagem de regresso, está de partida. Despedimo-nos. Na Tua Baía, percorro o meu olhar, os meus dedos, com os meus dedos. Voltarei. Estamos de chegada, talvez ao ponto de partida. Mas mais ricos. Pisa Fronteira, para cá e para lá. Já se sonham novas viagens, talvez mais longe, ou mesmo nos becos, de cá, em Lisboa. O nosso fado!


Gostámos da viagem. Muito. Gostámos muito das vozes, dos sons. Nem sempre das percussões sintetizadas. Mas quase sempre. Às vezes também não dos tapetes. Sintetizados. De resto foi uma viagem perfeita, se é que se pode dizer isso, a não ser da próxima! Ficam-nos óptimas recordações. O álbum, de Salomé Nascimento, ficou excelente. Poderemos recordar mais vezes esta viagem, com prazer. Ficamos à espera de mais, talvez para o ano. A história desta viagem poderia ter sido outra. Poderá ser outra. É ouvir e imaginar. Cada um de nós...

Miguel Esteves


(1) O bouzouki é um instrumento de cordas muito popular na música tradicional da Grécia. Com o nome derivado da palavra Turca "Buzuk" não sofreu grandes alterações ao longo dos séculos. Foi perseguido no último século por estar associado, erradamente, á sociedade criminal na Grécia. A música tradicional relacionada com este instrumento - a Rebetika - esteve, de facto, muito tempo ligada ao mundo prisional, resultando da adaptação da música rural (em geral designada por demotiki) às condições da população urbana vinda do campo. Embora o bouzouki se tenha transformado no instrumento mais característico da rebetika (proveniente da grande família balcânica das tambouras), a verdade é que a elementar baglama, que ainda hoje está para o bouzouki como a viola para a guitarra no fado, resulta da invenção de um instrumento que acompanhasse as canções dos presos, mas que tivesse simplicidade e dimensões que permitissem construi-la e escondê-la em prisões onde eram proibidas. Hoje em dia afirma-se que tocar Bouzuki e conseguir tirar do instrumento "o espelho da nossa alma" é privilégio que só alguns conseguem atingir... Nos primeiros tempos crê-se que tivessem 3 cordas duplas com afinação DAD (Ré-Lá-Ré). Hoje em dia encontram-se bouzukis de 4 cordas duplas com afinação CFAD (Dó-Ré-Lá-Ré), o que permite fundir muita da técnica contemporânea da guitarra na técnica tradicional. A título de curiosidade, é frequente encontrar o Bouzouki nas formações musicais irlandesas; tratando-se, contudo, de uma transformação do original grego, importado muito recentemente pelos grupos folk irlandeses.

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