Monday, January 14, 2008

À Espera de Armandinho

À Espera de Armandinho é o título do último trabalho discográfico do guitarrista português Pedro Jóia e bem se podia chamar à descoberta de Armandinho pela ideia peregrina e pouco frequente em terras lusas de estudar e dar a conhecer as obras de compositores portugueses, aqueles que de facto constituem o nosso património, tão rico e relevante como muitos outros, universais também, pela sua importância no património musical da humanidade. Basta para isso reconhecer as influências do fado em tantos outros géneros musicais e vice-versa. Armando Augusto Freire, Armandinho (1891/1946), como era e é conhecido, muito embora desprovido de educação musical formal, foi à sua época um músico notável, que desenvolveu uma carreira invejável, ao ponto de muitos o considerarem o pai da guitarra portuguesa (1)
. O próprio Artur Paredes, seu contemporâneo e admirador teria comentado: “era uma renda tudo o que ele tocava!”. Este autor de relevância ímpar no contexto da música portuguesa e no fado particularmente, deixou-nos uma importante e significativa obra, donde se destacam inúmeras variações e fados como o Fado Armandinho, o Fado de S. Miguel, ou o Fado Conde de Anadia. É portanto, por si só, de destacar a iniciativa, dir-se-ia num âmbito mais académico, de estudar e divulgar a obra deste português notável. Pedro Jóia, ao editar este trabalho discográfico, tomou essa difícil mas entusiasmante tarefa nas suas mãos, ou melhor, nos seus dedos, já que para além de a constituir como um significativo trabalho contemporâneo sobre a obra de Armandinho, talvez sem precedentes, transporta parte desta, directamente para a actualidade, para o mundo do séc. XXI dos sons e dos instrumentos. Pedro Jóia traduz, com excelência, a obra de Armandinho, para o seu próprio instrumento, a viola de Flamenco (2), com os riscos e as dificuldades associadas, dadas as diferenças em termos de execução dos dois instrumentos, acrescentando ainda a nota grave do bordão, normalmente entregue à viola de fado, sintetizando com toda a oportunidade e eficácia, o acompanhamento e os ornamentos e frases melódicas da guitarra portuguesa. O resultado parece-nos ímpar. A transposição da obra de Armandinho para a sonoridade da viola de Flamenco, ou melhor seria dizer, para a viola clássica, já que a execução de Pedro Jóia afasta-se, julgamos que por via das características da obra, da sua matriz flamenca e introduz uma referência erudita, é de efeito surpreendente, quando pensamos que Armandinho não tinha quaisquer conhecimentos musicais formais ou académicos. Tudo isto nos leva a considerar, mais uma vez, a genialidade de Armandinho, e a forma como se vê ou se aborda um autor e a sua obra, que não raras vezes, resultam primordialmente da intenção e da honestidade com que se faz essa abordagem, e não da qualidade da obra em si, inevitável, mas tantas vezes desconsiderada por via, como é o caso, das origens humildes do autor. Pedro Jóia ultrapassou com sobriedade este desafio e revelou, como refere Rui Vieira Nery no folheto deste trabalho, o “(...) respeito apaixonado pela letra e pelo espírito dos originais (...)” produzindo assim um “(...) álbum muito belo, cheio de encanto, intimismo e generosidade. (...)”. Quem ouvisse este trabalho sem quaisquer referências prévias diria tratar-se de uma qualquer obra erudita, para guitarra clássica, de um compositor reconhecido, o que traduz a impressão geral deste trabalho. Pedro Jóia interpreta com extrema eficácia e sobriedade a obra de Armandinho, sendo certo que qualquer alma lusa poderia e deveria reconhecer a nossa, a do fado. Sem distinção razoável entre os vários temas que interpreta, Pedro Jóia viaja por variações e fados de Armandinho, construindo um álbum sóbrio, de sonoridade pouco exuberante mas fiel ao instrumento e ao seu som acústico. Sem ser nestes termos, esmagador, enquadra-se num trabalho de cariz clássico, onde o fado e Armandinho são revelados em face de uma outra dimensão, descortinando muitas outras possibilidades e abrindo portas para o futuro assim haja vontades para o fazer, já que talento, é certo que existe, de Armandinho a Pedro Jóia, um século mais tarde... Assim se recebe o passado, com a dignidade merecida, transportando-o para o futuro, de uma outra forma, com a mesma dignidade, que é isso que o presente deve fazer..., é isso a que hoje e amanhã chamaremos cultura, à memória do passado, transportada pelo presente, para o futuro. (1891) Morreu Armandinho - O Mago da Guitarra. (2007) Renasceu para todos nós, pelas cordas de Pedro Jóia.

Miguel Esteves

(1) Sobre a guitarra portuguesa diz-nos Carlos Paredes: “O instrumento musical a que chamamos hoje “Guitarra Portuguesa”, foi inventado em Inglaterra na 2ª. metade do séc. XVIII. Surgiu como resposta à necessidade de obter do cístre, instrumento utilizado em toda a Europa Ocidental durante o Renascimento, uma sonoridade mais emotiva e volumosa, de acordo com as transformações verificadas no gosto musical da época, a apontar em alguns aspectos, para o Romantismo. Foi-lhe dado o nome de “Guitarra Inglesa” e se na aparência, pouco se distinguia do cístre, já dele profundamente diferia nas qualidades essenciais. (…) ”. Chegada a Portugal com os comerciantes ingleses do vinho do Porto, só a partir da 2ª. metade do século XIX se comprovou a sua ligação ao Fado (até então este seria acompanhado pela “Viola de Cinco Ordens de Arame”, instrumento popular muito em voga.). Ruy Vieira Nery, musicólogo, considera Armandinho responsável pelo grande desenvolvimento técnico da guitarra portuguesa do princípio do séc. XX, resultado do seu trabalho e dos avanços no desenho e nos materiais aplicados ao instrumento, em colaboração com o construtor João Pedro Grácio Jr., tornado-o um instrumento singular e típico de Lisboa, muito distinta das guitarras oitocentistas e até da sua irmã desenvolvida de maneira semelhante por Artur Paredes e Grácio. - in ADRIANO, António, Armandinho, Câmara Municipal de Lisboa (www.cm-lisboa.pt), Comissão Municipal de Toponímia, Lisboa, 2007.
(2) A guitarra utilizada por Pedro Jóia é uma guitarra de Óscar Cardoso, que apresenta um diferente desenho e construção, não se podendo considerar, de facto, uma típica guitarra clássica ou de flamenco (informação constante no folheto do CD).

2 comments:

LM said...

Não sabia quem era o Sr Armando Augusto Freite, pelo que acabaste de preencher uma lacuna cultural minha; o Pedro Jóia conheço e gosto muito, mas o que agradeço é que me digas como posso comprar o 'Fresta', porque pelo site oficial da AE a coisa não funciona...
Obrigada, e claro, gosto em ler-te.

AE said...

Acabei de fazer uma encomenda pelo site da AE do CD Fresta que funcionou bem, o que deve querer dizer que deverão existir definições nomeadamente de firewall que não permitem o envio do formulário... seja como for, pode enviar os dados que são pedidos no site para ambiguae.mail@sapo.pt ou artesdoespectaculo.com.sapo.pt !... Obrigado também pela minha parte, por tudo!