Tuesday, March 24, 2009

sulitânia

A tradição já não é o que era. Esta afirmação traduz normalmente uma conotação negativa por de alguma forma sugerir o abandono ou a adulteração de costumes e hábitos antigos, nomeadamente no que se refere às manifestações culturais dos povos, os quais, invariavelmente, todos queremos preservar, sendo que a forma de o fazer constitui a discussão fundamental subjacente a estas matérias. A importância indiscutível das tradições é tão significativa, que nem sempre nos debruçamos sobre o seu verdadeiro significado. Elas, as tradições, constituem um elo imprescindível do indivíduo ao seu meio, à sociedade em que se integra, estabelecendo sentimentos de pertença e de identificação, fundamentais para a sobrevivência tanto dos indivíduos como da sociedade, que se constituirá necessariamente num conjunto agregado de partilha de funções fundamentais para o seu próprio sucesso, em todas as várias vertentes, económica, social e outras. Poderíamos dizer, em termos históricos, que estas são características elementares da humanidade desde os primórdios das civilizações. Falamos então de elementos tão variados como a língua e os sotaques, a arquitectura, o meio físico, entre muitos outros, para definir um padrão de reconhecimento e de pertença às comunidades, quase sempre visível através das características culturais específicas que cada uma dessas comunidades apresenta. Digamos que as artes, no geral, nas suas mais variadas formas, constituem um elemento de identificação visível utilizado para estabelecer o elo fundamental de um agrupamento humano. Falta referir um aspecto chave desta questão, a memória. Todos estes factores têm necessariamente de atravessar os tempos, para além da memória do indivíduo. As tradições culturais constituem o veículo de transporte dessas características de todos nós, mantendo-nos ligados à comunidade e aos seus indivíduos. As tradições representam uma memória colectiva fundamental para a agregação das comunidades humanas, a várias escalas e com variadíssimos e complexos sistemas de reconhecimento que nos levaria por outros caminhos, que não estes 4 caminhos. Ninguém desejaria perder a sua memória individual, por esta constituir o elemento único e totalmente individualizado de cada um de nós. A nossa amnésia constituiria a perda total da nossa individualidade. Também ao nível da sociedade, a sua memória ou a memória de si mesma constitui o traço indelével e profundo da sua identidade. Sem ela, a comunidade não teria nem sentido, e muito menos, possibilidade de existência. Por isso mesmo, as tradições culturais revelam-se de uma importância fundamental, sem que muitas vezes nos apercebamos disso, na sua verdadeira profundidade e alcance. Individualmente existe normalmente a tendência, creio que biológica e genética, para manter e preservar as tradições a todo o custo, esquecendo-nos que a nossa memória individual é muito mais curta que a da sociedade, e que esta sempre evoluiu, como o próprio planeta, traduzindo, reproduzindo e fazendo evoluir, ao logo de séculos ou milhares de anos, os traços e as características que nos vão mantendo solidários a uma ideia e um estar comuns. Por isso, a nossa memória, colectiva, e a forma de a apresentarmos não pode nem deve ser imutável, antes, deve acompanhar a evolução natural de todas as coisas, tal como o trabalho no campo e a forma de o cantar, evoluiu. Caso contrário, por mais que isso pareça estranho a alguns, correremos o risco efectivo de perdermos grande parte das nossas raízes e memórias colectivas. Isto tudo para dizer que penso que o caminho de Sulitânia corresponde a isso mesmo e é bem vindo por isso. De alguma maneira estabelece uma ponte entre o passado, dos cantes do trabalho e do amor, das jornas, e o seu futuro, sem as vozes ao fundo, na taberna, juntas ao vinho do trabalho, sem as tecedeiras, mas com outras sonoridades, connosco e com a nossa memória. Não sei se estas serão as tradições do futuro, porque também ninguém sabe. Sei no entanto que o nosso papel é abrir portas para esse futuro. Creio que Sulitânia constitui uma válida e muito importante sugestão, um trabalho que merece a maior atenção, por tudo isso e mais. A Ronda dos Quatro Caminhos, nascida em 1983, tem pautado a sua existência pela atenção à música e aos instrumentos populares e tem, penso que de uma forma mais ou menos evidente, procurado recuperar, recriar e trazer toda essa realidade para o presente, com todas as suas especificidades e realidades, e, consequentemente, projectando o resultado das suas pesquisas e a interpretação destas, num futuro, certo, mesmo que desconhecido. Dando de alguma forma continuidade ao álbum Terra de Abrigo, onde denota, de uma forma mais evidente, a tendência de interpretar uma fusão do presente com o passado, e onde nomeadamente, contou com a participação de vários coros alentejanos, da Orquestra Sinfónica de Córdoba, e ainda, de Katia Guerreiro, Amina Alaoui, Pedro Caldeira Cabral, Ezperanza Fernandes e José António Rodriguez, a Ronda dos Quatro Caminhos, desta vez, com Sulitânia, vem traduzir a música popular numa linguagem actual, moderna, com arranjos muito particulares, bem imaginados e muito interessantes, estabelecendo uma ponte possível com o passado, e mais uma vez, respeitando as características fundamentais da recolha, como as melodias e as letras, por vezes as vozes e os instrumentos tradicionais, mas juntando orquestrações eruditas, e servindo-se agora da colaboração imprescindível das Adufeiras de Monsanto, do Coral Guadiana de Mértola e do coro Eborae Musica, e ainda, dos grupos Cantares de Évora, Ateneu Mourense, Quarteto Opus 4, cuja participação, ao que parece pela ficha técnica apresentada, não muito clara, se resume ao último tema “Cravo Roxo”, e também as Flautas de Bisel, cuja participação, no caso particular, não é referida especificamente, na mesma ficha técnica. Com a apresentação gráfica em óptimo nível, a Ronda dos Quatro Caminhos percorre o Baixo Alentejo e a Beira Baixa, como é habitual, resultado do enorme e significativo repertório existente nestas duas regiões, nomeadamente no que se refere ao uso das vozes polifónicas. Não tanto no conteúdo, mas com muita evidência na forma, este trabalho apresenta-se muito variado, interpretando os vários temas, que geralmente recorrem a uma voz solista, através ora de vozes tradicionais ora através de uma interpretação mais erudita e educada, o mesmo acontecendo com os coros e as respostas ao tema principal, que alternam, quase por regra, e inversamente, da mesma forma. Muito evidentes, as cordas, cremos que a cargo do Quarteto Opus 4, são uma constante, e acamam todo o trabalho, de alguma forma criando um conjunto coerente entre os vários temas. De resto, os instrumentos tradicionais, as percussões, o piano, trazem-nos a sonoridade mais habitual da Ronda, que marca a identidade do trabalho, numa fusão bem conseguida, ligeira, ligeiramente complexa e profunda, sem excessos, fácil e agradável de ouvir, que deixa um gosto subtil no palato. Não se pode dizer que seja uma surpresa, mas sim, a confirmação de um bom trabalho que tem sido realizado pela Ronda, e que vale a pena saborear, nomeadamente pela conjugação dos ingredientes, pelo apelo à nossa memória colectiva, por nos relembrarem, assim, com um travo a vinho maduro e a novas especiarias.

Miguel Esteves

BIOGRAFIA | A Ronda dos Quatro Caminhos surge em finais de 1983, dedicando a sua atenção à cultura popular, aos instrumentos e à música tradicional, e à sua recriação. O primeiro LP, "Ronda dos Quatro Caminhos", é editado em 1984. O disco "Cantigas do Sete - Estrelo" é editado em 1985. Este é o último disco da banda com a colaboração de Vítor Reino. O terceiro álbum, "Canções Tradicionais Infantis", é editado no Natal de 1985. Em 1986 é editado o quarto disco intitulado "Amores de Maio". Em 1987 o grupo concretiza uma velha ideia, a de fazer um disco de fados tradicionais, surgindo então o disco "Fados Velhos". A compilação "O Melhor da Ronda (1983-1989)" é editada em 1989. Em 1991 é editado o álbum "Romarias". Realizam em Maio de 1993, no Teatro Municipal de S. Luiz, em Lisboa, o espectáculo "Uma noite de música tradicional". O disco "Uma Noite de Música Tradicional", gravado ao vivo durante essa apresentação, é editado no ano seguinte. Em 1995, é reeditado em CD, através da Polygram, o álbum "Canções Tradicionais Infantis". Em 1997 é editado "Recantos", disco marcado por uma nova sonoridade alcançada por uma instrumentação mais urbana assente nos violinos e no piano acústico. O grupo participa no 8º Festival Intercéltico e o disco de estreia é reeditado pela Movieplay. O disco "Outras Terras", lançado em edição de autor, é editado em 1999. A Ronda dos Quatro Caminhos dá dois espectáculos no Teatro Garcia de Resende, em Évora, nos dias 24 e 25 de Novembro de 2000. O álbum "Alçude", gravado ao vivo nos espectáculos de Évora, foi editado em Maio de 2001. O lançamento do disco foi na Fábrica da Música, em Évora. O disco inclui seis músicas originais. Em 2003 foi lançado o disco "Terra de Abrigo" que conta com a participação da Orquestra Sinfónica de Córdoba, de Pedro Caldeira Cabral, José António Rodriguez, de sete coros alentejanos e das vozes de Katia Guerreiro, Esperanza Fernandez e Amina Alaoui. Em Dezembro de 2005 é editado o DVD, que também inclui um CD áudio, com o registo gravado aquando da apresentação ao vivo de "Terra de Abrigo" no CCB em Janeiro desse ano. Em 2007 é editado o CD “Sulitânia”.


DISCOGRAFIA | Ronda dos Quatro Caminhos (LP, Orfeu/Rádio Triunfo, 1984) / Cantigas do Sete - Estrelo (LP, Rádio Triunfo, 1985) / Canções Tradicionais Infantis (LP, Transmédia, 1985) / Amores de Maio (LP, Ovação, 1986) / Fados Velhos (LP, Ovação, 1987) / O Melhor da Ronda (Compilação, Ovação, 1989) / Romarias (CD, Ovação, 1991) / Uma Noite de Música Tradicional (CD, Polygram, 1994) / Recantos (CD, Polygram, 1997) / Outras Terras (CD, Edição Autor, 1999) / Alçude (CD, Ovação, 2001) / Terra de Abrigo (CD, Ocarina, 2003) / Sulitânia (CD, Ocarina, 2007)


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